Gustavo Dainezi

Quando somos motivados a pensar sobre o amor, quase que imediatamente pensamos na família, ou no que na nossa experiência ocupa o lugar de maior investimento emocional.

Quando temos na família histórias fortes ou traumáticas, querendo ou não, elas vêm à mente, pois é tolo aquele que acha que controla o fluxo das suas próprias ideias. No meu caso, difícil não pensar no dia em que faleceu meu pai.

Uma cirurgia na sexta-feira, complicações e morte dois dias depois. Lembro que na noite de sábado para domingo dormíamos na casa de minha tia, no suporte emocional que a união familiar proporcionava. Lembro-me do GP da Austrália de Fórmula 1. Tentei assistir, mas fui arrebatado pelo sono e dormi.

No dia seguinte, acordei com a notícia do falecimento às 7h da manhã. Pensei que era um horário inóspito para morrer. O horário de acordar. Daí em diante, o dia mais triste e bizarro da minha vida. Um café da manhã que deveria ser delicioso, com salames, café com leite quentinho, variedade de pães e frios. Mas tudo parecia bege. Tinha um gosto bege. E assim vivi este dia, sem referência, sempre me perguntando se eu estava sentindo as coisas certas, reagindo da maneira certa.

Mas fato é que estamos aqui para falar do amor. Que Kant definiu como a virtude acima das virtudes, a ação benevolente por excelência. Mas fato é também que não podemos entender o amor sem entender o básico dos afetos humanos. Afinal, o amor não é um afeto fácil. Ou alguém aqui acha fácil amar?

Para entender sobre nossos sentimentos vou me apropriar da teoria espinosana[1]. Esse autor considera que nosso corpo e nossa mente são dois fenômenos com a mesma origem: a matéria. Essa matéria, corporal, se move o tempo todo. Esse movimento, como todo movimento, requer uma certa energia. No caso, energia de viver. Conatus[2] para Espinosa. Co–ato, aquilo que está junto ao ato, junto à ação. A sua energia. Interessante, né? Existe em nós uma energia de vida. Essa energia oscila, como todo ser vivente já deve ter percebido. Se você nunca se deu conta, eu conto: sair para correr. Sair do sofá para ir correr. Quem corre sabe que os quilômetros percorridos não são o desafio. O desafio é sair do sofá.

Isso porque a nossa energia de sofá, reconheçamos, é baixa. Bem baixa. Daquelas insuficientes para ir buscar o controle. Tem gente que já dorme no sofá que é para não ter de ir para a cama. Esse é o nível de conatus. Conatus-sofá. Beirando o zero. Por isso é tão difícil sair do sofá para ir correr. E nem precisa estar chovendo.

Agora, quem corre também vai te dizer que a sensação depois da corrida é excelente. Uma energia, um vigor, um prazer indescritíveis. Eu, mesmo tentando, não consigo sentir isso, mas acredito nos colegas, que parecem bem convencidos do que dizem.

Está aí um exemplo de oscilação do conatus, de bem baixo para bem alto. Coaches chamam isso de motivação. O que te dá razão para agir. O que move a sua ação. Claro que podemos refinar o entendimento de motivação, digamos, para algo menos marqueteiro, já que não estamos aqui para vender workshops de enceração.

Tudo o que vivemos altera nossa energia, para mais ou para menos.

Pois é óbvio que toda ação tem uma motivação. Estar motivado não é um estado específico, que se busca e se atinge por rituais cabalísticos de repetição de ‘frases motivacionais’. Tudo que fazemos é motivado por algo. Absolutamente tudo. Então, buscar motivação é uma grande besteira. Entender as motivações que estão por toda parte, pelo contrário, é essencial para uma vida menos sofrida.

Pois saber o que nos afeta é saber o que nos motiva.

Afeto, para Espinosa, é a própria oscilação da nossa energia de viver. Assim, tudo o que vivemos altera nossa energia, para mais ou para menos. Quando altera para mais, chamamos de alegria. Para menos, de tristeza. Simples, né? Assim, o sofá é uma das maiores fontes de tristeza da face da Terra. Sofá: deite e seja triste. Mas não é só a inocente mobília que nos entristece. Encontros diversos com o mundo, notícias inesperadas, trânsito, filas. Tudo que abaixa nossa potência de agir, nosso conatus, é tristeza. Já tudo que aumenta a potência é alegria. Uma aula, quando nos ensina algo novo, aumenta nossa potência de agir. Aula alegre. Um whats recebido só com a palavra vem alegra.

Alegria não é só a euforia de uma grande vitória, mas está presente em vários pequenos momentos ao longo do dia. É também todo pequeno afeto que nos ajuda a progredir na trilha da vida. Aquele pedacinho de sol na sala no qual ficamos uns 5 minutos, até ele virar sombra de novo. Aquela água fresca. O cafezinho na temperatura ideal, o e-mail respondido.

Esses são os dois afetos básicos. Os outros todos se formam a partir deles. O medo, por exemplo, é uma tristeza específica, causada por imaginarmos uma tristeza no futuro. Definição perfeita. A dor é uma tristeza em uma parte específica do corpo. Vejamos, então, a diferença: um leão à sua frente. Prestes a te atacar, mas ainda sem fazê-lo. Você sente medo. Do leão? Não. Medo de que ele te ataque. Ataque futuro. Aí o leão te ataca. Medo de ser atacado você não sente mais. Agora sente dor. Na perna mordida. O medo, se existir ainda, é do que ainda não aconteceu. No caso, pode ser de morrer.

Da mesma maneira, a esperança, oposta ao medo como a alegria da tristeza. Esperança é a alegria causada pela imaginação de uma alegria futura. Esperança de que o leão se desinteresse pela sua perna, esqueça da sua existência e siga por outro caminho. Esperança de que o governo mude. Alegrias futuras que, imaginadas, acalentam o coração no presente.

Medo e esperança, como alegria e tristeza, são formas de motivação. Uma pessoa com medo agirá diferentemente de uma pessoa com esperança. E o fará justamente porque sente medo. Uma pessoa com fome agirá diferentemente de uma pessoa sem fome. Uma pessoa com dor idem em relação a alguém sem dor. Afetos nos motivam. Frases, bem… só quando afetam, mas, mesmo assim, quem move a ação são eles, não elas.

Inveja: tristeza causada ao se verificar a alegria de outros por causa de um objeto desejado por si. A TV LED curva do vizinho. O sucesso profissional da vizinha. Eles se alegram. Nós, que desejamos o que eles têm, entristecemos por não termos nada. Inveja também é uma motivação.

Ciúme: tristeza ao flagrar a alegria do ser desejado junto a outro ser, indesejado. Essa definição é tão perfeita que carece de explicação. Ciúme é motivação.

Notamos já que as motivações não são somente aquelas coisas lindas e boas de discursos motivacionais. Há motivações más, que levam a ações danosas e prejudiciais. E há as boas, que levam a ações construtivas e benéficas.

Na filosofia, essa é a diferença entre as motivações viciosas e aquelas virtuosas. Do ponto de vista dos afetos, existe um representante máximo para cada um desses tipos de motivação.

Do lado do vício, o afeto que significa alegria pessoal com a destruição do outro. Esse afeto é o ódio. Note que o ódio busca a alegria. Mas ele é um vício, pois se trata de uma alegria corrompida, dependente de um mal, a destruição do outro. Esse afeto se chama ódio. Do ódio, nada de bom pode sair.

O afeto mais virtuoso é aquele contrário ao ódio. Lembrando que, para Espinosa, os afetos funcionam como em balanças, sendo anulados pelos seus opostos. O afeto que anula o ódio é simples: alegrar-se com a alegria do outro.

Nada mais nobre. E não significa simplesmente sentir-se bem. Não. Lembremos que alegria é aumento da potência de agir. Pode vir com prazer, mas pode ser também a força para superar um sofrimento.

Sendo assim, o amor, o mais virtuoso dos sentimentos, é aquele que nos dá forças para superar tudo em nome da alegria do outro.

E aqui eu chego aonde queria chegar. Isso porque meu pai não morreu às 7h da manhã do domingo, como eu pensava quando acordei. Meu pai morreu ainda na noite do sábado. Lá quando passava o GP da Austrália. Minha mãe ficou sabendo na hora. E, por amor, escolheu não contar a mim e à minha irmã. Alegria motivada pela alegria de quem se ama. Nós dormíamos em paz. Sem viver as piores noites das nossas vidas que ela, por amor e com a força que este lhe deu, viveu por nós.

O amor é a maior das motivações, a maior fonte de força vital de que se tem notícia. Amemos.

[1] Baruch de Espinosa (1632-1677) foi um filósofo holandês. É considerado um dos pensadores da linha racionalista. Sua Ética é um dos livros mais importantes da história da filosofia.
[2] Latim para esforço; impulso, inclinação, tendência; cometimento.

Gustavo Dainezi é mestre e doutorando em comunicação e práticas do consumo pela ESPM. Graduado em Comunicação pela ECA/USP, é professor de ética pelo Espaço Ética e membro do comitê de Ética do Instituto Apae-SP.

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