Em setembro de 2022, o Brasil comemora 200 anos de independência e a reinauguração do Museu Paulista, que carinhosamente é conhecido como Museu do Ipiranga, faz parte dessa celebração. É o museu mais antigo e o mais visitado da cidade de São Paulo. Foi inaugurado em 7 de setembro de 1895 e vinculado à USP em 1963.
Desde 2013, o museu está fechado para visitas. Foram nove anos de restauro, inclusive do seu quadro mais impactante, Independência ou Morte, de Pedro Américo. Apesar de essa obra suscitar muitas discussões, por não ser um retrato fiel do 7 de setembro de 1822, ela continua atraindo os olhares atentos dos visitantes.
Para saber mais sobre o novo Museu do Ipiranga, clique aqui.
E para celebrar essa data histórica, a INSPIRE-C preparou alguns artigos especiais e uma entrevista com o professor de história Alek Sander de Carvalho, que você confere a seguir.
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Boa leitura!
INSPIRE-C: Aprendemos na escola que a Independência do Brasil ocorreu em 7 de setembro de 1822, mas sabemos que a Independência foi um processo. Quanto tempo de fato levou esse processo e por que comemoramos o 7 de setembro?
Alek: A resposta a essa pergunta é mais complexa do que pode parecer, e se precipitar em respondê-la objetivamente contribui para perpetuar uma versão histórica distorcida. É importante destacar que o Brasil foi o único país das Américas onde a independência e a identidade nacional não caminharam juntas. O país, como organismo político independente, surgiu antes da identidade nacional brasileira. O “primeiro” projeto, portanto, de invenção dessa identidade só obteve um desenho mais nítido a partir de meados da década de 1880 e foi assenhorado, principalmente, pela elite paulista, cuja natureza racista e eugenista suprimiu os elementos mais dominantes de nossa formação cultural, no caso, as matrizes indígenas e africanas.
O resultado dessa supressão foi a fundação de uma ancestralidade assentada na branquitude europeia e no masculino. Daí a invenção de dom Pedro I como herói da nação e da Independência do Brasil como marco a ser celebrado. A questão é que o escravista Pedro não era herói, não existia algo que se pudesse chamar de nação em 1822, a declaração da ruptura com Portugal ocorreu em 2 e não no dia 7 de setembro e a cena do quadro do pintor Pedro Américo é, por inteiro, uma obra de ficção.
A esse tipo de narrativa histórica construída pela fértil inventividade da imaginação de uma elite racista e carente de reconhecimento europeu, que se esforçou para dizer ao mundo que também era europeia, surgiu, no século XX, um necessário movimento de crítica que redefiniu o jeito de se construir conhecimento na área das humanidades. O método, a análise crítica das fontes, o esforço por alguma neutralidade e o resgate das “vozes historicamente silenciadas” tornaram-se instrumentos indispensáveis para a construção de conhecimento histórico.
O tradicional abismo entre o conhecimento construído na universidade e a sala de ensino básico foi atenuado na última década por políticas de Estado que promoveram a formação de multidões. Mesmo que ainda não ocorra de forma amplamente satisfatória, o conhecimento universitário alcançou o ambiente escolar e o transformou.
Daí que temas como ensino decolonial, afrocentrado e articulado com as culturas indígenas sejam fundamentais no currículo escolar contemporâneo e objeto de constante reflexão e empenho do Centro de Referências Negras do Colégio Cristo Rei.
Trabalhar com essa narrativa significa desenvolver um trabalho alinhado com aquilo que de mais atual se produz como conhecimento e método histórico. Mais que isso, permite-nos superar as armadilhas postas pelo racismo e pelo escravismo que tentaram apagar da nossa identidade aquilo que nos é mais essencial, nossas raízes afro-indígenas.
Não se trata, portanto, de negar a importância que existe na ruptura de uma colônia de exploração com a sua metrópole exploradora, mas dessacralizar personagens e fatos, assumindo um compromisso com alguma verdade histórica possível e, sobretudo, com a formação educacional de nossas alunas e alunos.
INSPIRE-C: Quais foram os momentos marcantes e os personagens fundamentais para a Independência do Brasil?
Alek: Bem, só a partir da reflexão acima conseguimos entender a Independência do Brasil como processo, iniciado em 1808 com a abertura dos portos por dom João VI e consolidado em 1815 com a oficialização do Brasil como Reino Unido a Portugal e Algarves. Em 1820, uma Revolução Liberal iniciada no Porto exigia o retorno do rei fujão. Sem sustentação política no Brasil, dom João não teve outra alternativa que não fosse retornar a sua terra natal para assinar a perda dos seus poderes reais. Quando as cortes portuguesas exigiram o retorno do príncipe herdeiro e regente dom Pedro, ele declarou a independência, com a colaboração da elite agrária escravista que temia voltar a ser colônia de Portugal. A Declaração de Independência foi assinada, portanto, no dia 2 de setembro de 1822, mas limitada em todos os aspectos. Não arranhou o privilégio de uma minoria branca, não aboliu a escravidão, não erradicou a pobreza e não ampliou a cidadania às mulheres.
Vale destacar que a Capitania da Bahia, em 1798/1799, e a Capitania de Pernambuco, em 1817, tentaram tornar-se independentes do Brasil e de Portugal, abolir a escravidão e criar um estado republicano. Pautas que em nenhum momento foram sequer cogitadas pelas forças que conduziram à independência do Brasil em 1822.
INSPIRE-C: Que mulheres desempenharam papéis fundamentais para a Independência?
Alek: O processo de ruptura com Portugal não foi consensual no Brasil muito pelo fato de que não estava consolidada uma identidade que fizesse as pessoas se reconhecerem como brasileiras. Se se analisar a realidade social do país em 1822, o que se encontrará será uma diversidade de identidades. A guerra para a consolidação da Independência colocou em conflito parte dessas identidades. O governo tratou disso como era o seu hábito, com a formação às pressas de milícias locais. Houve o ingresso de tropas mercenárias e a narrativa oficial costuma exaltar a liderança do Lorde Cochrane e de Pierre Labatut. O último, inclusive, entrou para o imaginário folclórico como uma monstruosidade que pune as crianças.
Enfim, é nesse contexto de luta pela consolidação da independência que as mulheres costumam ser lembradas. Maria Quitéria teve papel relevante na consolidação da independência na província da Bahia, o que lhe rendeu condecorações oficiais pelo rei Pedro I e a liderança de um regimento em 1823 formado por mulheres.
Maria Filipa, mulher preta da Ilha de Itaparica, na Bahia, é outra personagem importante. No entanto, não foi condecorada por Pedro e a ótica racista que inventou a brasilidade na segunda metade do XIX chega até a negar a sua existência, ignorando a oralidade como elemento transmissor de história entre as nações africanas escravizadas no Brasil.
Vale destacar que a participação de pessoas escravizadas, dos setores pobres e livres da sociedade, das mulheres e de algumas nações indígenas nas lutas de independência permite uma reflexão sobre os anseios que as levaram para a linha de frente.
INSPIRE-C: No que a Independência do Brasil difere da de outros países latino-americanos?
Alek: Cada processo de independência dos países surgidos nas Américas possui as suas especificidades, mas há similaridades que nos permitem aproximá-los, como, por exemplo, a criação de regimes republicanos, a adoção do federalismo, a abolição da escravidão concomitante ao processo de independência em muitos desses países, entre outros.
A independência do Brasil, por sua vez, foi por inteiro distinta, a começar pela presença de dom Pedro, príncipe herdeiro da Coroa portuguesa, que foi uma das forças atuantes na independência do Brasil de sua terra natal. Esse, por si só, já faria do processo de ruptura brasileiro uma anomalia no continente.
Vale destacar também que o processo de ruptura política com Portugal foi conduzido de cima para baixo, havendo um esforço das elites para limitar a participação da população pobre livre e das pessoas escravizadas.
INSPIRE-C: Se fizermos um balanço geral dos últimos 200 anos, temos mais coisas para comemorar ou para lamentar?
Alek: A resposta está no tempo presente tensionando permanentemente o nosso cotidiano em praticamente todas as dimensões de sociabilidade e relações de poder. Os efeitos da escravidão, do patriarcalismo, do machismo e de tantos outros preconceitos continuam vitimando multidões de pessoas em nosso país, seja por meio da violência gerada pelas instituições de Estado, seja pela omissão deste em relação a suas responsabilidades para promover cidadania. As vítimas no Brasil têm cor, gênero, orientação sexual e etnia.
Teimosamente, continuamos aqui, resistindo, lutando e tentando com muito esforço caminhar para um futuro em que nossos filhos e filhas não tenham que vivenciar as dores que experimentamos. Para tanto, a educação é uma ponte indispensável. Olhar para o passado sem as distorções que se perpetuaram como oficiais nos ajudará a achar no quilombo, na aldeia ou em uma comunidade a independência que ainda não foi experimentada por todas as pessoas deste país.
Alek Sander de Carvalho
Bacharel em História pela FFLCH/USP e Licenciado pela FE/USP
Integrante do Centro de Referências Negras do Colégio Cristo Rei – SP