Por Homero Santiago
Os hinos (tanto faz se nacional, militar, religioso, esportivo) geralmente servem a reconhecer e exaltar as glórias de algo (uma pátria, um deus, um time). O objeto é retratado de forma magnânima, situado acima de tudo e de todos: a minha pátria, o meu deus, o meu time são o máximo; o resto é só o resto, e talvez daí venha a razão de os hinos quase sempre silenciarem a alteridade (outras pátrias, outros deuses, outros times). Entre tantos exemplos, basta recordar nosso hino nacional: “entre outras mil / és tu, Brasil”, ou então um futebolístico: “tu és o orgulho / dos desportistas do Brasil”; nos dois casos, o que pertence a quem canta figura como superior e invejável aos demais. De maneira mais animosa, certos hinos representam o outro como inimigo a ser batido (“quando surge o alviverde imponente / no gramado em que a luta o aguarda) ou, chegando ao extremo, massacrado (“que um sangue impuro / banhe nosso solo”).
Em poucas palavras, o gênero hino se regula pelo que podemos denominar uma disjunção exclusiva, em que a identidade e a afirmação de algo se constroem, se e somente se, pela depreciação ou velada negação de outra. É a lógica do: ou isso ou aquilo, ou amigo ou inimigo, estando toda terceira opção necessariamente excluída.
Por estranho que pareça, esse formato rígido veio-me à cabeça quando da disputa do campeonato carioca de futebol deste ano, brilhantemente vencida pelo Fluminense sobre o Flamengo e após um revés no jogo de ida. Num lampejo, pela primeira vez consegui atribuir o devido valor a certos detalhes do famoso hino do Flamengo e fiquei boquiaberto com a profunda originalidade ali contida.
Na década de 1940, Lamartine Babo compôs hinos para vários times cariocas; alguns chegaram a sobrepujar, no gosto das torcidas, os cantos oficiais. Foi o caso do Flamengo. Pouca gente conhece os versos solenes, e bem condizentes com o modelo acima descrito: “preto encarnado, idolatrado / de mil campeões o vencedor”. Ao contrário, todo mundo já deve ter ouvido estes versos encantadores: “uma vez Flamengo, sempre Flamengo / Flamengo sempre eu hei de ser”. Não é para menos. Musicalmente, sai de cena a sisudez dos hinos e vem uma alegre marcha; no plano das ideias, e com coerência, implode-se o gênero tradicional pela introdução de dois elementos inusitados.
Realcemos os versos: “é o meu maior prazer vê-lo brilhar / seja na terra, seja no mar”. Em lugar da canhestra exigência de amar uma terra só porque nela nasci ou de torcer para um time só porque ele é o maior, vem à tona a original ideia de que torço e quero ver jogar porque isso mexe afetivamente comigo (“ele me mata, me maltrata, me arrebata”) e sobretudo me dá prazer. A superioridade do time exaltado não deriva de algo exterior à própria ação de torcer; o time pode até ser derrotado, mas o que interessa mesmo, porque me apraz, é vê-lo em ação. No hinário carrancudo, Lamartine introduz o desejo e a importância de sua satisfação; em vez do dever, o prazer.
A segunda novidade, ainda mais significativa, é a inserção do maior rival no curso do próprio hino e com o devido reconhecimento de sua grandeza: “consagrado no gramado / sempre amado, o mais cotado / nos Fla-Flus é o ‘Ai, Jesus!’”. Com a menção ao célebre certame, o adversário Fluminense é elevado a um patamar inédito e constitutivo da identidade do próprio Flamengo. Como é natural, cada um busca vencer, mas se compreende que a vitória está sempre na dependência da grandeza do outro, condição para que a vitória seja de fato dignificante (convenhamos que não engrandece ninguém vencer o que, no metiê do futebol, se chama de “café-com-leite”). E daí ainda a relevância do saborosíssimo “Ai, Jesus”; um vacilo respeitoso pelo adversário (estaremos à altura dele?) que reverte sobre nós quando logramos bravamente vencê-lo.
Como Hegel explicou certa vez que não se consegue pensar o ser sem passar pelo nada, nem pensar o nada sem passar pelo ser, já que uma noção não se constrói senão pela negação da outra, igualmente não existe a altivez do Fla sem a do Flu, e vice-versa. Algo disso talvez tenha inspirado o dito espirituoso de Nelson Rodrigues: “o Fla-Flu surgiu quarenta minutos antes do nada”. Ali está algo outro de tudo que conhecemos, algo mais primitivo e fundamental — e que só encontro paralelo numa genial frase do filme Boleiros, de Ugo Giorgetti: “a senhora não sabe o que é um Palmeira e Corinthians”.
O fascínio do anti-hino de Lamartine recai em sua aposta numa ética diferente daquela do hinário tradicional, que só compreende a grandeza de um por meio da negação destrutiva do outro. Pelo contrário, vislumbramos a promessa de um mundo em que a nossa identidade não vai sem a existência do outro, uma espécie de consagração recíproca. Ninguém é Fla de todo o coração sem ter pelo menos um órgão vital fluminense — e vice-versa. Amor e rivalidade se envolvem numa insólita inimizade siamesa; mais ainda, culminam numa síntese disjuntiva que se poderia bem exprimir pela forma “e/ou”, contanto que, sem a obrigação de escolher entre um ou outro termo, entendamos a necessidade de manter ambos unidos em prazerosa tensão.
Não só caixinha de surpresas, o futebol também pode ser um caixote de ideias a explorar.
Homero Santiago
Doutor em Filosofia e professor livre-docente de História da Filosofia Moderna na Universidade de São Paulo.