Por Renata De Luca
Minha filha está na metade da graduação e iniciando seu primeiro contato com o mercado de trabalho no qual deseja atuar, artes visuais, por meio de programas de estágio. Seu objetivo, como todo graduando, é aprender, conhecer profissionais da área, rechear o currículo para chegar mais forte ao mercado de trabalho, cumprir horas obrigatórias para se formar e ganhar uma bolsa para ter seu próprio dinheiro.
Por enquanto, teve duas breves e frustrantes experiências: na primeira, encantou-se com uma galeria de artes que pediu que ela fosse um final de semana informalmente para conhecê-la. Depois, pediram mais uma semana no mesmo modelo. Passados dez dias, ela imprimiu o contrato do site da faculdade, entregou para a responsável para assinatura e a cada dia essa pessoa dava uma desculpa para não oficializar sua permanência no local. Instruída por mim, após trabalhar 15 dias nesse esquema, pediu um horário para assinatura do contrato, antes de retornar. Escreveram, por WhatsApp, que não precisava ir mais. Ela descobriu que outras pessoas que lá atuavam em diversas funções há algum tempo não eram registradas.
Na segunda, uma fundação artística, o contrato foi assinado antes de trabalhar; regras claras e tudo muito bem organizado e definido: recebeu uniforme, escala mensal e todo o suporte necessário do RH do local. Mas o trabalho, na prática, era atuar como controladora de acesso nas salas de exposição, diferentemente do proposto na entrevista seletiva. Passava o dia sentada em um banquinho e, como ela disse, seu trabalho era dizer não: não pode tocar nas obras, não pode correr, comer no local, transitar sem máscara. Fui visitar a exposição, perguntei sobre algumas telas e ela, assim como nenhum outro estagiário, não sabia explicar, pois não estavam lá para isso. Eram controladores de acesso travestidos de estagiários de artes.
Infelizmente, não estamos falando de uma experiência isolada. Muitos locais utilizam os estagiários como mão de obra informal e/ou barata. É uma pena, pois perdem em não desenvolver e posteriormente aproveitar jovens talentos, além de causar um impacto muito negativo em quem entra no mercado de trabalho. Em casa, tenho me valido das experiências para ensinar o que é correto, a ter “jogo de cintura”, conhecer ambientes e pessoas, fortalecer posições e conter o imediatismo tão próprio desta nova geração. Jovens saem do ambiente universitário repletos de ideologias e acostumados a um universo restrito a pares semelhantes. Caem no mercado de trabalho inocentes e lá terão oportunidade de contrapor ideologia x realidade, teoria x prática e amigos x colegas.
Locais que desejam receber estagiários devem estar dispostos a exercer o papel de tutores. Ensinar regras básicas do ambiente de trabalho sobre vestimenta, comportamento e linguagem; capacitá-los para que exerçam suas funções e acompanhar de perto as entregas; pedir que pesquisem melhorias e aceitar sugestões advindas da troca com o meio acadêmico. Ser tutor de um estagiário exige responsabilidade e dedicação, é um papel de semeador.
Ocorre que temos pressa, falta tempo para ensinar e disposição para acompanhar. Queremos que as pessoas cheguem prontas e exerçam rapidamente o papel para o qual foram contratadas. E nesse ciclo muitos aprendem sozinhos, replicam erros e entregam com deficiência, por ausência de uma integração bem feita. A jornada de onboarding (processo de integração) começa com a apresentação da história daquele local, seguida pela transmissão da cultura e da visão de um todo das áreas. Apenas depois disso chegamos à aprendizagem específica da função que será exercida. Isso vale para qualquer função, não apenas para estagiários. O tema é tão relevante que atualmente existem ferramentas digitais específicas para o assunto, com tecnologia interativa para acompanhar todas as etapas e facilitar a comunicação entre o gestor e o novo membro da equipe.
Antes de abrir espaço para aprendizes, uma corporação deve refletir sobre seus objetivos e ter claro o propósito em fazê-lo. Na primeira experiência da minha filha isso não podia ser feito, pois agiam na clandestinidade e na ilegalidade travestida de boas intenções. Na segunda, o objetivo real do estágio estava disfarçado e a fala de quem continuava como estagiário era “não gostamos do que fazemos aqui, mas estamos pelo dinheiro”. Não deixa de ser uma troca, mas faltou transparência.
Renata De Luca
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Diretora de RH da Security Segurança e Serviços, psicóloga (PUC/SP), psicanalista (IP/USP), mestre em Educação (FE/USP) e MBA em Gestão de Pessoas (FGV).