Professor Dr. Denis Donizeti Bruza Molino
Entrevista realizada por Camila Barreto
Transcrição de Ronaldo Campos

INSPIRE-C: Antes de comentar sobre o Surrealismo propriamente dito, como podemos situar o momento “pré-surrealista”?

Denis: O Surrealismo é uma escola de artistas do começo do século XX. Na verdade, são três personagens principais que compõem o Surrealismo. O principal deles é, evidentemente, o André Breton (1896-1966). Ele escreve os Manifestos Surrealistas. O primeiro deles é de 1924 e existem dois outros que também compõem esse núcleo. Portanto, inicialmente devemos pensar o Surrealismo na chave das letras, depois uma ligação com a pintura, com o cinema, o Luis Buñuel (1900-1983), por exemplo, com o filme Um Cão Andaluz (1929), com a fotografia, Man Ray (1890-1976) — que são campos de expansão que surgem depois da poesia.

Então, o primeiro núcleo é a poesia. Em seguida, vem o que é chamado de “os três mosqueteiros”, como ficou conhecido na época: André Breton, Louis Aragon e Philippe Soupault. Porém, existe uma quarta personagem importante, que é um poeta bastante conhecido, o Guillaume Apollinaire, que também circulou muito junto a esses artistas das letras. Um segundo aspecto importante a considerar é que o Surrealismo surge como a investigação do sonho, como uma arte do onírico, em 1924, ligado à ideia do automatismo psíquico. Então, essa dimensão freudiana da associação livre de ideias a partir do livro A interpretação dos sonhos, de Freud, dá origem a esses personagens que saem do Dadaísmo. Esse é o primeiro dado fundamental para entender o Surrealismo. A gente não entende o Surrealismo sem pensar que o próprio Breton foi ligado ao Dadaísmo (movimento artístico de cunho niilista, nascido durante a Primeira Guerra Mundial e que durou de 1916 a 1922, que utilizava a mistificação, o riso, a incongruência e a provocação para negar todas as formas de arte e denunciar o absurdo e o arbitrarismo reinantes no mundo).

INSPIRE-C: Qual foi o impacto do Manifesto Surrealista naquela época? De que modo esse movimento desafia ou mesmo rompe com as convenções estéticas estabelecidas naquele momento?

Denis: Do ponto de vista dos procedimentos artísticos, a maior força do Surrealismo é a escrita automática. Trata-se de uma escrita de puro fluxo, um fluxo contínuo. É isso que os surrealistas reivindicavam, essa coisa freudiana, embora Freud dissesse que não tinha nada a ver com aquilo, porque a percepção dele era completamente diferente da arte surrealista. Esse é um elemento fundamental do Surrealismo.

O Manifesto Surrealista é de 1924 e dois anos depois há uma exposição artística, que eles chamam de Galeria Surrealista, quando começam a ter pinturas e outras manifestações artísticas. Então, o Surrealismo sai desse núcleo propriamente literário e se expande para outras expressões artísticas. O cadáver delicado, por exemplo, é um jogo coletivo em que se pega um papel dobrado e alguém desenha alguma coisa, a parte desenhada fica oculta na dobradura e uma segunda pessoa faz uma intervenção, que também ficará oculta e assim sucessivamente. Essa dimensão coletiva cria uma arte não individual, ou seja, uma arte coletiva.

INSPIRE-C: Existe um apelo latente do Surrealismo à questão do sonho e do inconsciente. Você poderia comentar um pouco sobre como o movimento aborda esse assunto em sua produção artística e como ele contribui até os dias atuais para o estudo da identidade e do inconsciente no contexto cultural que temos hoje?

Denis: É preciso pensar o Surrealismo como um herdeiro do Dadá, e o Dadaísmo propunha liberação geral, justamente por conta da Primeira Guerra Mundial. Um bom exemplo disso são os Manifestos Dadás, dos quais podemos destacar o manifesto do Tzara (1896-1963). Ele ensina como escrever um poema dadaísta. A fórmula é simples, é ao modo de uma receita de bolo:

Receita Para Fazer Um Poema Dadaísta
Pegue um jornal.
Pegue uma tesoura.
Escolha no jornal um artigo com o comprimento que pensa dar ao seu poema.
Recorte o artigo.
Depois, recorte cuidadosamente todas as palavras que formam o artigo e meta-as num saco.
Agite suavemente.
Seguidamente, tire os recortes um por um.
Copie conscienciosamente pela ordem em que saem do saco.
O poema será parecido consigo.
E pronto: será um escritor infinitamente original e duma adorável sensibilidade, embora incompreendido pelo vulgo.
Receita para Fazer um Poema Dadaísta (Literatura Mundial: Tristan Tzara/Toma Aí Um Poema)

Assim, o Dadá abre para o aleatório, para o vale-tudo. Essa dimensão do aleatório, que depois vai se chamar de Surreal, é fundamental para pensar uma arte que quebra todo o racionalismo, toda sequência lógica cartesiana que se impunha ainda no século XIX. Então, um primeiro lastro dessa dimensão, do abrir a porteira, é que tudo ficou possível. E o Surrealismo, ou parte dos surrealistas, tinha essa coisa do encantamento, do onírico, de produzir um deslocamento, uma imagem que possa ter um efeito sobre o espectador e encantá-lo novamente num mundo pós Primeira Guerra Mundial.

Nessa linha, um pintor que fez sucesso foi o René Magritte (1898-1967), com a pintura Ceci n’est pas une pipe (Isto não é um cachimbo), que basicamente é uma questão de linguagem. É aquela velha história: “A palavra cão não morde”, que se trata de uma brincadeira entre texto e imagem e, portanto, dos limites da representação. Magritte faz uma série de pinturas com esse efeito enigmático. Como ele tinha uma técnica muito apurada, parece quase um ilustrador de revista, as pinturas têm um efeito de encantamento. Ele misturava dia e noite, por exemplo, e outros efeitos que são sacadas, pequenas sacadas, que é um desdobramento do Surrealismo.

INSPIRE-C: Quais os desdobramentos do Surrealismo hoje em termos de influência estética contemporânea? Como o surrealismo, cem anos depois do Manifesto, segue inspirando a arte contemporânea?

Denis: O desdobramento do Surrealismo que mais ficou é o lado publicitário, esse lado da sacadinha, o lado do pequeno efeito que dá a sensação de um deslocamento, de arrebatamento, e no instante seguinte você percebe que é só isso. Muito da arte contemporânea trabalha com essa coisa da sacadinha. Você cria um estilema, uma logomarca, e sempre olha a partir disso. Se a gente chamar isso de arte, trata-se de uma coisa pobre. Nessa linha, o Surrealismo sobreviveu. Essa arte ruim que hoje existe na arte contemporânea é filha da marquetaria de produzir dinheiro, como o Dalí soube fazer. Se ele não foi o primeiro, ele ao menos abriu a porteira para este tipo de arte: fazer de si um objeto de venda.

Como também a moda, que até hoje se apropria de signos genéricos do surrealismo. Porque se pensarmos na força do Surrealismo nos anos 1920, que está muito ligada a algumas pinturas do Max Ernst, estamos falando de produções incompreensíveis no sentido de que elas não se revelam em primeira, segunda ou terceira observação. Como também é o caso da literatura surrealista, desde Os Campos Magnéticos, de Breton, em que essa escrita automática é um jogo maravilhoso de produção de múltiplos sentidos.

Trata-se, portanto, de um tipo de arte que exige tempo, distanciamento e silêncio. Então me parece que o lado forte do Surrealismo, como também o lado forte das outras vanguardas, não é esse que vingou até os dias de hoje. De modo que o lastro que ficou é muito mais esse da sacadinha, do publicitário.

INSPIRE-C: O que te inspira?

Denis: Acho que a dimensão da ideia de transformar o mundo, onde há mundo possível e o mundo possível é o mundo em que há uma centelha. Inspiração é um termo que atualmente fica muito ligado ao cristianismo, vem da filosofia patrística, do Deus interior, mas sei que não é esse o sentido que vocês pegaram para o nome da revista. Por exemplo, Rousseau falava “a moral do coração”, que tem essa dimensão, mas eu pensaria menos na inspiração e mais no arrebatamento — já que a gente gosta do rigor das palavras.

Nesse sentido, a gente pode pegar os Manifestos de Breton, que ainda têm uma força para nos fazer pensar, ou uma revista chamada Minotaure, dos anos 1930 — coloquem aí na matéria: “Leiam a revista Minotaure!”, e quem escrevia, é importante relembrar, pois poucas pessoas se recordam, era o Lacan. As pessoas conhecem o Lacan psicanalista, mas ele tem um lado surrealista. Na Minotaure, Breton disse: “Existe um ponto de espírito em que a vida e a morte, o real e o imaginário, o passado e o futuro, o comunicável e o incomunicável, o alto e o baixo cessam de ser percebidos de modo contraditório”. Aí que está a vida, a arte, nessa centelha, nessa fricção de não mais separar entre loucura e razão, sonho e ação, entre o que é percepção física e mental.


Professor Dr. Denis Donizeti Bruza Molino
Doutor, mestre e graduado em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP). Foi curador assistente do Masp (2008-2014), tendo ainda realizado a curadoria do Acervo Artístico da Câmara Municipal de São Paulo (2016). Professor de história da arte e de matérias correlatas, ministra cursos e palestras em diversas instituições, como museus, faculdades, centros culturais, galerias e ateliês de arte, além de grupos particulares. Dedica-se atualmente a uma pesquisa pós-doutoral também na USP sobre as Artes Incoerentes: um grupo artístico parisiense de fins do século XIX, cujos procedimentos prefiguram não pouca arte contemporânea.
Como ensaísta e tradutor, publica pela Iluminuras (2024) Das narrativas verdadeiras, de Luciano de Samósata, edição bilíngue que contém a tradução do grego para o português, notas explicativas, bem como ensaios sobre a referida obra de Luciano de Samósata.

Imagens na ordem em que aparecem no texto:
Capa: The Spirit of Geometry (1937)/René Magritte/Tate
Manifesto: Encyclopaedia Britannica
Le cadavre exquis no. 11 (Exquisite Corpse No. 11) Multiple artists/makers 1930/The Metropolitan Museum of Art
Ceci n’est pas une pipe/René Magritte
Salvador Dalí/Encyclopaedia Britannica
Surrealismo na publicidade/propaganda (Pinterest)
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