Por Andrei Venturini Martins
Na obra O futuro de uma ilusão (1927), Sigmund Freud, médico e inventor da psicanálise, analisa o valor das ideias religiosas. Em seu diagnóstico, a religião é o resultado do desamparo da criança, da nostalgia de um pai protetor. Mais tarde, da mesma forma que a criança fantasia um pai protetor, o adulto fantasia um Deus todo-poderoso: “Como já sabemos, a terrível impressão deixada pelo desamparo da criança despertou a necessidade de proteção — proteção através do amor —, fornecida pelo pai; e a compreensão de que esse desamparo continua por toda a vida motivou o apego à existência de outro pai — agora mais poderoso” (FREUD, 1927). A religião se molda a partir do desejo de permanecer vivo, de superar a morte, de ver-se protegido do peso da existência. É essa a tese principal de seu livro.
Porém, antes de construir tal tese, Freud assinala qual seria o papel da cultura ou civilização, termos que o autor trabalha como sinônimos ao longo do texto. “Refiro-me a tudo aquilo em que a vida humana se ergueu acima de suas condições animais e em que se diferencia da vida animal” (FREUD, 1927). Podemos assim entender, de modo sintetizado, de acordo com Freud, que a palavra cultura abrange todos os conhecimentos e habilidades utilizados para controlar a natureza e dela extrair os bens que satisfazem as necessidades humanas, mas que também engloba as instituições necessárias para regular as relações humanas e conter a violência da vida em sociedade.
Essas duas faces da cultura — controlar a natureza e regular as condições humanas —, as quais eu chamaria de científica e moral, não são independentes entre si e se relacionam de três maneiras. Primeiro porque os homens são influenciados pelo grau de satisfação que os bens proporcionam, já que há uma evidente luta pelos bens; em segundo lugar, porque o próprio indivíduo pode assumir a condição de um bem, seja como força de trabalho, seja como objeto de desejo sexual; e, por último, porque todo indivíduo é, no final das contas, inimigo da cultura. É nesse último aspecto que eu pretendo me concentrar.
Embora incapazes de viver isolados, os indivíduos sentem como um fardo os sacrifícios impostos pela vida em sociedade. Por um lado, impelido pelo princípio de prazer — obtenção do máximo de prazer e repúdio de toda dor e sofrimento —, todo cidadão percebe que a civilização traz alguns bônus, já que a vida em sociedade não o deixa exposto à violência gratuita, cruel e angustiante perpetrada por outros seres humanos. Mas, por outro lado, a civilização cobra do indivíduo um rigor comportamental que muitas vezes não está em harmonia com seus desejos. É fácil identificar, por exemplo, o desprazer causado pela vida em sociedade nas crianças cujo desejo de realizar suas mais variadas vontades é inibido pelos pais na árdua tarefa de educar. Com o tempo, se a educação tiver sido “bem-sucedida”, o infante interioriza a cultura, as leis, as regras, os comportamentos, e torna-se um partícipe da comunidade humana, apesar do preço a pagar: o sacrifício de seus desejos, alguns dos quais cruéis e violentos. “Portanto, a civilização tem de ser defendida contra o indivíduo, e todos os seus regulamentos, instituições e decretos são postos a serviço dessa tarefa.” Nesse aspecto, a tarefa da cultura seria, então, tornar a maioria, que é hostil à civilização, minoria.
Contudo, será que a civilização gera mais descontentamentos do que benefícios? O que Freud diria sobre uma cultura que protesta contra as proibições e os interditos de uma sociedade? Ou seja, uma cultura que tira seu chapéu de balizadora de condutas para vestir o chapéu de guardiã da total liberdade e da falta de limites. Responder a essas perguntas é sempre muito difícil, mas o eminente psicanalista de Viena nos dá algumas pistas de qual seria o seu posicionamento diante de posturas que defendem o conhecido adágio é proibido proibir, bandeira dos protestos ocorridos em maio de 1968, em Paris, e que depois se espalharam por boa parte do mundo.
Para Freud, todos os homens possuem tendências destrutivas, antissociais e anticulturais. Por esse motivo, a fruição de todo desejo poderia gerar muita perturbação e discórdia. Mesmo a ciência e a técnica, sem os devidos freios, podem ser usadas para aniquilação das criações humanas. Se não houvesse a cultura impondo determinados limites, e todas as proibições fossem abolidas, certamente poderíamos fazer quase tudo que nos agradasse: escolher qualquer objeto sexual incapaz de resistir à superioridade de nossa força, aniquilar os rivais, tomar para si os bens dos outros, escravizar os mais fracos etc. Aparentemente, viveríamos essa macabra felicidade irrestrita marcada pela plena fruição de nossos desejos.
No entanto, ainda que livres das leis e regulamentos sociais e vulneráveis às investidas violentas de outros homens, a “mãe natureza” não nos permitiria fazer tudo. Mesmo que eliminássemos os limites culturais, depararíamos com os limites a nós impostos pela natureza. “Ela nos mata, de modo frio, cruel, inabalável” (FREUD, 1927); zomba de nós quando tentamos dominá-la: a terra nos engole por meio dos terremotos, tempestades e inundações varrem regiões inteiras, as doenças provocadas por seres microscópicos são capazes de aniquilar milhares de pessoas, a morte impiedosamente aumenta a comunidade dos mortos. “Com essas forças a natureza se ergue contra nós, majestosa, cruel, implacável, sempre nos recordando nossa fraqueza e desvalia, que pensávamos haver superado mediante o trabalho da civilização” (FREUD, 1927).
O aparente benefício do é proibido proibir pode significar a mais bela liberdade para alguns adultos infantilizados, que protestam quando pressionados pelos necessários instrumentos de coação da vida em sociedade. Mas a natureza, majestosa e única em sua grandeza e força, é indiferente aos delírios humanos e segue o seu ininterrupto hábito de conduzir toda criação à condição inorgânica das pedras.
Andrei Venturini Martins
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Doutor em Filosofia pela PUC-SP. Professor no Instituto Federal de São Paulo (IFSP), palestrante na Casa do Saber e pesquisador do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia (Fundasp-PUC/SP). Dentre as obras de sua autoria, destaca-se o livro A verdade é insuportável: ensaios sobre a hipocrisia (Editora Filocalia, 2019).