INSPIRE-C conversou com o rabino Michel Schlesinger na Congregação Israelita Paulista.
Extremamente amável e com um largo sorriso, ele nos deixou à vontade para escolher o local da entrevista. Optamos pelo interior da sinagoga, que, com seu pé-direito alto e vitrais na parte central do teto, criava o ambiente ideal para uma conversa agradável e descontraída. O tema? Confiança.
Realizada em 17 de maio de 2018, na CIP (Congregação Israelita Paulista)
Entrevista: Ronaldo Assais
Fotos: Olga Vlahou
INSPIRE-C: Então, que bom que você já conhece o Clóvis (de Barros Filho)! Ele fala sobre confiança por meio de exemplos: a confiança é um valor, assim como a desconfiança. Então, quando você vê um avião, você confia que aquilo voa, não vai checar se está tudo certo. Assim como você também confia que o comandante está habilitado, apto para fazer aquele voo.
Nesse sentido, ele elabora um conceito bem simples de que confiar nada mais é que delegar algo que você não pode estar constantemente verificando. É nessa linha que o Clóvis trabalha. É bem fácil de entender. Aí vem a primeira pergunta: Como o valor da confiança é tratado no judaísmo?
Rabino Michel: O judaísmo construiu uma sociedade em que o valor da confiança é absolutamente essencial. O tal do fio do bigode é o que imperava nas relações judaicas. As pessoas diziam uma às outras que iam fazer determinada coisa e aquilo era o suficiente. Tanto que os contratos eram celebrados da seguinte maneira: você tinha duas testemunhas e levantava um objeto na frente delas, e isso era um pacto. Pacto era feito desse jeito. Em hebraico, isso se chama kinian e permaneceu por muito tempo. Com o passar dos anos, infelizmente, a sociedade de forma geral tem tentado criar instrumentos de garantia, e penso que isso também influenciou o judaísmo.
O judaísmo de hoje também utiliza os contratos, os certificados etc. Mas acredito que o que vale, no final das contas, é a palavra, porque sabemos que quando as pessoas não querem cumprir com seus compromissos, por mais que haja papel, contrato, assinatura, garantia, elas não vão honrar aquilo que tinham combinado. Então, a palavra foi e, em minha opinião, continua sendo a maior garantia de todas. Os contratos são um mal necessário das relações anônimas, vamos dizer, do mundo contemporâneo, mas que no fim também se baseiam na honra e na palavra, porque de outra forma não serão cumpridos. Vale lembrar que Deus criou o mundo com a palavra, então a palavra tem um peso muito grande. Deus disse e o mundo passou a ser, o mundo passou a existir. Isso também é uma mensagem simbólica, metafórica, de que assim como a palavra constrói o mundo, ela também o destrói. Temos de ter uma responsabilidade muito grande em relação ao que dizemos ou deixamos de dizer. Isso é muito forte no judaísmo.
INSPIRE-C: Poderíamos dizer, então, que a comunicação é fundamental para qualquer convivência e existência?
Rabino Michel: Sem dúvida. Concordo.
INSPIRE-C: Inspirados pela atuação profissional do professor Clóvis, temos tido muitos seguidores jovens. E aí vem a pergunta: como a confiança é transmitida para os jovens?
Rabino Michel: Eu os ensino a assumirem a responsabilidade com a palavra. Na comunidade judaica, os meninos iniciam o seu caminho de amadurecimento aos 13 anos, e as meninas, aos 12. Bar-mitzvá e bat-mitzvá.
Um dos temas que nós trabalhamos muito fortemente é a questão da importância de cuidar muito bem do que se diz. Na medida em que você assume um compromisso, você tem que cumpri-lo. Até usamos um exemplo: quando você fala para a sua avó “domingo eu vou almoçar na sua casa”, na verdade, está celebrando um compromisso, está fazendo uma promessa. Se você vier a não almoçar na casa da sua avó no domingo, estará quebrando um compromisso. Então, cada coisa que a gente diz é muito importante. É claro que às vezes, por circunstâncias da vida, a gente não consegue cumprir. Mas temos que ter a consciência de que as pessoas se programam em função daquilo que a gente diz. O outro terá toda uma expectativa, eventualmente vai fazer compras e se preparar, esperando que você vá…
INSPIRE-C: Ele está confiando.
Rabino Michel: Sim, está confiando que você vá. Existe uma confiança em torno daquele compromisso que você assumiu. Nós trabalhamos muito o tema da confiança e da importância de honrar aquilo que se diz.
INSPIRE-C: É comum perceber que a desconfiança é o primeiro sentimento que experimentamos quando estamos encarando uma situação nova ou conhecendo uma nova pessoa. Depois a desconfiança vai dando lugar para a confiança. Você concorda com essa afirmativa? Se sim, então pergunto: é possível primeiro confiar e, se for o caso, eventualmente desconfiar?
Rabino Michel: Vejo dois tipos principais de pessoas na vida: as que andam pela vida desconfiadas (risos), achando que todo mundo vai enganá-las, e aquelas que, ao contrário, confiam nas outras. Eu prefiro o segundo caminho. Prefiro me decepcionar por ter confiado demais em alguém do que passar pela vida desconfiado. É claro que tudo isso tem limites. A gente vive num mundo em que infelizmente há pessoas que não são bacanas, não são legais, não têm bom caráter. Mas, de modo geral, o mundo é feito por pessoas boas, gente de boa índole. Pessoas legais. Então, não se justifica, em minha opinião, passar pela vida desconfiado. Acho que a gente tem que confiar. Temos de viver confiando nas pessoas e acreditando que elas serão boas, honestas, corretas, sinceras. E no momento em que isso não acontecer, prefiro pagar o preço de me decepcionar pontualmente uma vez ou outra do que viver uma vida de desconfiança.
INSPIRE-C: Até dois ou três anos atrás, o professor Clóvis era muito requisitado pelas empresas para falar sobre confiança. De lá pra cá, em sua grande maioria, as empresas o chamam para falar sobre motivação. Você acha que as pessoas estão mais confiantes e menos motivadas?
Rabino Michel: Eu não saberia responder, até porque acho que quando falamos de pessoas, estamos fazendo uma generalização em que corremos o risco de errar feio. Acho que cada um é cada um, e mesmo uma pessoa mais motivada ou menos motivada, ou que tem mais confiança ou menos confiança, passa por fases na vida. O ser humano é complexo. Então, dependendo do que eu li no jornal naquela manhã ou do que está acontecendo com a minha família, ou no meu trabalho, vou eventualmente estar menos motivado ou mais desconfiado. Acho que isso deve estar incluído na nossa forma de ler o homem. Saber que o ser humano não é o mesmo de manhã, à tarde e à noite, não é o mesmo num dia e no outro, não é o mesmo com 20 anos e com 50 anos. A gente muda, passa por momentos diferentes, e ainda bem! Existe uma dinâmica, mas, de modo geral, acredito que todos precisam de motivação, qualquer que seja ela, para levantar de manhã e viver. E todos também precisam de confiança.
Confiança e motivação são dois temas essenciais e que caminham juntos. E são, de alguma maneira, o combustível do ser humano. É preciso acreditar que as coisas vão funcionar e dar certo, e você precisa ter uma motivação que te tire da cama todos os dias.
Prefiro me decepcionar por ter confiado demais em alguém do que passar pela vida desconfiado.
INSPIRE-C: Você tem alguma dica sobre como a gente consegue, já no primeiro segundo, ao abrir os olhos, acordar confiante e se motivar para tocar o dia, a vida?
Rabino Michel: Existem várias receitas. A minha é acreditar que existe um algo maior, um propósito maior, um ser superior. Eu, como rabino, uma pessoa religiosa, acredito em Deus e que existe esse ser superior, que cuida de nós e nos motiva, e que motiva, inclusive, a nossa confiança. Mas acredito que mesmo pessoas que são agnósticas e que eventualmente não têm uma fé religiosa como a minha podem abraçar, por exemplo, experiências positivas que tiveram em sua vida, de ter confiado em alguém e isso ter dado certo, ter funcionado, para que isso sirva de porto seguro em um momento de crise — porque todos nós vamos passar por momentos de decepção e de crise. Em um momento desse, de decepção e crise, se eu conseguir me lembrar de que a pessoa que está na minha frente me decepcionou, mas que isso não significa que a humanidade como um todo é decepcionante, se eu evitar a generalização de uma experiência negativa particular para o todo, então conseguirei seguir em frente me agarrando nas boas experiências e nas vezes em que confiei e não me decepcionei.
INSPIRE-C: Sem entrar no mérito da política ou de qualquer radicalização, estamos vivendo um contexto muito agitado no país. Como você olha para o que está acontecendo no Brasil, de um modo geral?
Rabino Michel: Sou um otimista incurável, e tenho que ser. Acredito que vivemos um momento de grandes desafios no Brasil, mas como toda crise, tem suas oportunidades, e de alguma maneira o que estamos vivendo na política brasileira está trazendo uma esperança. Afinal de contas, pessoas estão sendo investigadas, julgadas, condenadas por terem feito mau uso do dinheiro público, por terem enganado seus eleitores, e aí existe uma oportunidade muito grande. Uma oportunidade de fazer com que a ética seja fortalecida. Que o bem maior, o bem público, seja valorizado. Então, acredito que tudo o que estamos passando é muito dolorido, é difícil, mas já está nos conduzindo para patamares diferentes.