Por Joyce de Sousa Silva
Hoje acordei. Beberiquei o dia antes de tomá-lo para mim. As confusões se assentaram em minha frente e eu quase as tocava, mas os arroios deviam correr soltos. Eu era um prisma por onde a luz solta perpassava… Tinha o propósito de um nada, que é ecoar tudo aquilo que se diz.
Bebi café deitada, encarando os pés que se estendiam no lençol resoluto. No começo foi difícil. Senti vontade de chorar. Compreendi minha pequenez. O mundo lá fora, correndo sobre os telhados, imaculado… e eu, tão paralela. Não comi muito, só o suficiente para expectar melhor. Não queria perder uma gota do azedo limão que se desdobrava em minha boca.
Gesticulei, não disse palavra alguma para o Outro. Só para mim, para Deus. Aliás, eu chorei. Senti medo. Um medo que nascia em mim para morrer, para matar. Ouvi, mas não disse nada. Perguntaram-me por que não dizia. Minha mente, como sombra sempre à frente, agia para moldar. No entanto eu, de corpo, nada faria. Combinei comigo que hoje não daria nada. Só receberia. Estava de mãos vazias estendidas para o mundo.
Caminhei pouco. Não queria me cansar. Hoje não seria devorador. Seria só Hoje. Gesticulei. É impressionante como não se dão pela falta de uma voz quando todos gritam ao mesmo tempo. Quase ia dizendo, mas a inefabilidade era maior. Me cobria. “Mundo mundo, vasto mundo, mais vasto é meu coração.” Sim, sabemos, posto que as ruas de São Paulo, em suas tessituras que me embrulham, são por mim ressoadas quando rebatem em meu coração.
Senti muita vontade de abraçar. Vi um bebê tão insosso que me comovia. Me movia. Meus olhos acompanhavam aquele ponto inquieto de nada. Era um recipiente feliz. Levou uma folha seca de presente à mãe. A mãe o beijou. Ele comeu parte da folha. O resto era Dela. A mãe o repreendeu. Tão simples, resoluto, grave. Hermeticamente aberto.
Senti vergonha. Uma vergonha orgulhosa de si mesma. Sentada ali, debaixo de uma sombra. Não desviei o olhar quando encurralada. As pessoas são curiosas com quem só recebe, nada dá. Mas a vergonha se prostrava ao prazer do estranhamento.
Mundo mundo, vasto mundo…
Os meninos corriam descalços pela grama. Meu peito se enchia de um ar estranho. Dolorido. De repente, eu sabia ser um balão. Tão descuidada, dentro da minha pele — não exatamente murcha, não exatamente preenchida — o gás se agitava para que eu flutuasse…
Os balões observam de cima. Eu, da janela do segundo andar.
Flutuava. Parava minha atenção aqui e ali, num olhar e no outro. Sem me demorar. Havia muito para ser feito hoje.
Um corpo bestial e quente cai na água gelada. Mimeticamente me desmonto. Meu coração se aperta mais… as palavras se perdem à procura de relatar. Relatar. Relatar. Respirar.
Essa vitrine dúbia de papéis que se confundem, a via crucis de minha metamorfose periódica. Os manequins caminham, eu observo imóvel. O dia começa a escurecer. Ainda sem conclusões. Ando preocupada a prestar contas de resíduos abocanhados em desespero.
Preciso prestar contas. Mas… uma espécie de liberdade se agita sob meus olhos infiltrados pelo rio. “Chove ouro baço, mas não no lá fora. É em mim. Sou a Hora. E a hora é de arroubos e toda ela escombros dela.” Dessa que fui sem me saber estar sendo: é um sacrifício sempre. Monto-me para esbofetear-me as estruturas, num prazer de quem mastiga o próprio dente solto na gengiva. É de ordem agridoce essa dor com que me alegro.
O dia está por um fio. Minha bondade vê o menino-mundo dançar. Logo preciso pisá-lo com passos firmes, falta-me tempo para o deixar sorrir e dançar com paciência.
Mundo mundo… vasto mundo… mais vasto é meu coração.
Mas voltarei calada, sem pedir licença a ninguém. Encerro-me em limites claros, clássicos de quem pretende ser.
Volto sem dono ao meu adestrador. Mas é difícil me despedir de mim, de um Eu que acordou composto em linhas tênues. Em traços experimentais.
Mas que Solombra, o astro compassivo e ameno dos fins de tarde, me desenhe.
Joyce de Sousa Silva
Estudante de Letras na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo.