Por Gustavo Dainezi

Os vídeos das crianças sempre garantiam as rodas de risadas da família. Em uma época em que muito poucas ocasiões eram filmadas, as capturas de momentos pitorescos e relevantes eram uma lufada de raridade e espontaneidade em vídeos que geralmente registravam nada mais que a modorrência cotidiana de eventos especiais.

Era uma infinidade de vídeos de aniversário em que nada acontecia. Outra infinidade de festas juninas da escola onde também nada acontecia, mas com quentão. Os highlights eram pessoas sentadas. Nas cadeiras esperando o bolo ou em muretas comendo pipoca. A impressão de quem via a coleção era que na década de 1990 nada acontecia em lugar nenhum.

Até que aparecia uma das crianças. “Bi o dô baga dá!? Dá?”. A frase emitida pela caçula foi tratada com naturalidade quando aconteceu. Tanto que no vídeo não há nenhuma risada. Fato amplamente contrastado pelo mundo fora da TV. A primeira vez que a fita foi assistida garantiu uma das sequências mais longas de riso ininterrupto na história da família. O que diacho estaria querendo dizer a criança? A resposta do pai “tá” e os gestos da criança só possibilitam entender o dá. Dá é tá. A parte do “bi ô dô baga” permanece completamente misteriosa. É o primeiro meme da história da família.

No outro vídeo de mais de meia hora de nada, aparece uma criança correndo para longe da câmera. Corre, corre, corre. Um vídeo anódino, insignificante, de uma criança correndo. Mas, para a surpresa de todos, no meio da corrida a criança passa a trotar como se houvesse um zumbi invisível segurando seu pé esquerdo. A trajetória antes retilínea e veloz, energética e decidida, agora se tornava errante, ziguezagueante, retorcida, insegura, lenta, batida.

De repente reconhece-se uma dobra em sua bota. Teria a criança quebrado o tornozelo correndo e agora pisava diretamente com sua tíbia?

Corre agora a mãe atrás do agora estático pimpolho. Este, reconhecendo a extraordinariedade de sua atual situação, vira seu tronco para a câmera e explica, professor que se tornaria: “Tá arrumando a minha ‘buota’”!

Não havia zumbi, nem perna quebrada. E a criança foi rápida em explicar a situação para que nossos corações não batessem mais rápido do que deveriam. Quem vive no Brasil provavelmente já sabe o que aconteceu: a bota, comprada especificamente para compor o figurino de dançarino de quadrilha para a festa junina da escola, fora comprada vários números acima do recomendado para o tamanho do pé da criança. Afinal, calçado é item de luxo no Brasil pós-desastre econômico no qual nem as mercadorias mais básicas se encontram facilmente.

Isso resultava em uma criança incapaz de correr como queria naquele momento sob o risco de desgastar a lateral da bota em vez de sua sola.
***
— Sensei, qual a tarefa de hoje?

— Preciso de quatro objetos quaisquer.

— Serve quatro almofadas?

— Serve, Alfredo-san. Imagine que no chão esteja desenhado um x e um + juntos. Uma estrela com oito pontas. Imaginou?

— Sim, sensei!

— Agora vá para o centro dessas linhas e coloque as almofadas nas quatro extremidades da cruz. Uma na sua frente, uma na esquerda, direita e atrás.

— O.k. E agora, sensei?

— Agora você vai ficar parado no lugar e mudar cada almofada uma posição, rodando no sentido horário.

E assim fez o intrépido aluno, confusíssimo com a aula. Dobrou seu tronco em L e conseguiu sem muito esforço se desvencilhar da tarefa.

Pegou a de cima, posição 1 e a moveu para a ponta nordeste, posição 2. A da direita, leste, moveu para o sudeste. A do sul para o sudoeste e a do oeste para o noroeste. Tinha agora uma almofada em cada posição do x, não mais uma em cada ponta da cruz. Fez mais uma vez sem acidente e ficou com a cruz de novo. Mais uma vez e o sensei o interrompe:

— Muito bem, Alfredo-san!

— Essa foi fácil, sensei!

— Agora faz agachado e somente uma mão pode tocar nas almofadas.

O exercício foi feito. O aluno pôde reparar com facilidade que remover uma das mãos do exercício o obrigava a prestar muito mais atenção nos movimentos, sobretudo no giro do tronco. As almofadas que ficavam na frente e do mesmo lado da mão eram movidas com facilidade, mas o aluno quase não conseguia alcançar as de trás e da esquerda, sobretudo quando estavam nas posições do x.

— Agora, Alfredo-san, vou afastar um pouco todas as almofadas e você terá que movê-las com uma das mãos somente.

Agachar já não bastava para o nosso intrépido Alfredo-san, que notou a necessidade de alterar seu eixo lateralmente. Assim, deveria apoiar-se com muito mais intensidade em uma das pernas para, dobrando seu tronco para baixo, chegar às almofadas. Encostava o joelho no peito e mandava ver. Para um lado e para o outro. Para trás, quase caía ao tentar retorcer o seu movimento nas almofadas do lado oposto do braço, mas por sorte se reequilibrava ao trazer os objetos pela frente.

— O.k., Alfredo-san, muito bem. Agora você não pode passar nenhuma almofada pela frente do seu corpo.

Esse demorou. Como pegar a almofada de trás com a mão direita e girar ainda mais o tronco para deixá-la na posição sudoeste, mais longínqua ainda? O braço não vai mais, a torção tem um limite. Não conseguia completar a manobra. Aí veio a primeira dica: “Não dobre o tronco, Alfredo-san. Agache com o tronco perpendicular ao solo”. A dica facilitou a torção, mas o quebra-cabeça não estava resolvido. Pegava com a mão direita a almofada de trás e ficava lá tentando se torcer até doer. Até que…

— Aaaaaahhhh, claro! Em vez de pegar a almofada e depois me retorcer, eu tenho de girar o braço e o tronco para a esquerda antes de pegar a almofada, e assim consigo pegá-la atrás de mim e deixá-la no lugar sudoeste, que não estará mais longe!

— Muito bom, Alfredo-san! Vê como por vários meios se chega ao mesmo fim? Agora as almofadas irão para mais longe.

— Ainda bem que a sala é grande, sensei!

E com as almofadas a um braço de distância de si, Alfredo-san não conseguia alcançá-las. Falhou. Sensei pergunta-lhe, então:

— Desistiu, Alfredo-san?

— Não, sensei, mas é que não alcanço. Nem se eu quisesse eu conseguiria.

— Tem certeza de que estão fora do seu alcance?

E o aluno agacha. Com os pés bem apoiados, pende para o lado como um brinquedo de gato, em arco, o máximo que consegue e desequilibra-se antes de chegar à almofada.

— Alfredo-san, seus pés não precisam ficar colados no chão. Use-os como eixos, gire-os no lugar, como um bailarino. Agache-se, estique uma das pernas no chão. Para chegar ao outro lado, mantenha o tronco ereto.

O estudante, desconcertado, agachou-se, experimentou girar o pé esquerdo para que ele apontasse para a esquerda, esticou a perna direita, viajou para a direção da almofada da posição 7, oeste, e a recolheu com uma facilidade espantosa. Suas pernas não mais trabalhavam como estacas fincadas, mas sim como eixos em torno dos quais seu corpo, utilizando-se de todas as dobras e elasticidade das pernas, navegava. Quanto mais ele explorava suas articulações, maior a facilidade para alcançar as almofadas.

Graças a essa maior liberdade de movimento, seu campo de ação quase dobrou na última tentativa em relação à primeira etapa do exercício, lá atrás. Antes ele se movia como uma haste fincada, com a amplitude de um círculo pequeno à sua volta. Agora ele tinha um movimento elíptico, oval, muito mais amplo em todos os sentidos, principalmente o lateral.

— Muito bem, Alfredo-san. Reparou como a nossa capacidade de fazer as coisas depende da forma como utilizamos os nossos recursos? Reparou como nossa ação tem limites e como uma parte deles é autoimposta?

— Nossa, sensei, a liberdade que eu senti quando comecei a girar os pés e esticar as pernas foi enorme!

— Exatamente, Alfredo-san. A lição de hoje é que a liberdade sempre tem um campo delimitado de ação. Nós somos livres para fazer o que podemos fazer. Em certa medida, nós definimos a liberdade pelas suas fronteiras. A gente só é livre para fazer o que pode fazer.

— Lembro de quando eu era criança e a bota soltava do meu pé e não me deixava correr. Eu não era livre para correr porque o próprio ato estava fora do meu alcance.

— Isso, Alfredo-san. Mas no caso da bota, a limitação da liberdade era externa. O mundo te dizia o que você não poderia fazer. O mundo empurrava para dentro as fronteiras da sua liberdade. Aqui no exercício foi você que as empurrou para fora.

E assim Alfredo-san descobriu que toda liberdade tem fronteiras. Elas podem ser externas ou autoimpostas. Elas podem ser físicas, emocionais, morais, econômicas ou sociais. As fronteiras da liberdade sempre existirão. São empurradas para fora quando aprimoramos nossas capacidades, quando nos permitimos ir além, quando podemos mais quando somos mais. Liberdade positiva, de ação, de participação.

As outras forças que podem alterar a fronteira, limitando ou expandindo a nossa capacidade de agir, são externas. Pode ser por não lutar contra, aplicando o conceito que chamamos de liberdade negativa, a não interferência. Pode ser facilitando o acesso a condições de aprimorarmos nossa capacidade de ação, quer seja pelo exercício físico, pelo acesso a equipamentos de saúde, políticas públicas de incentivo às artes, ao esporte, à leitura. Cada um desses suportes tem o potencial de expandir nossas fronteiras da liberdade, abrindo novas possibilidades de existência.

Pois a liberdade precisa de um universo de possíveis para ser ela mesma possível. Sem mundos possíveis, não há liberdade, por pura falta de escolha. E a liberdade sem nenhum freio somente ocorre na mais absoluta solidão e isolamento. E aí acabam-se as escolhas por falta de mundo sobre o qual agir.


Gustavo Dainezi
Doutorando em Comunicação e Consumo pela ESPM, professor e palestrante pelo Espaço Ética

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