Por Camila Barreto
De fato, as palavras têm poder. Os gregos antigos já sabiam disso, e utilizavam a arte retórica tanto para deliberar nas assembleias populares sobre a construção de um muro como para defender ou acusar alguém no tribunal. Ou então somente para convencer alguém em um debate: o que se falava, o modo como se falava e para quem se falava eram critérios essenciais para a construção de um discurso.
Desse modo, a linguagem era de extrema importância não só para a vida social na pólis como também para a democracia, já que, segundo o historiador Jean-Pierre Vernant, a palavra já tinha uma extraordinária proeminência sobre todos os outros instrumentos de poder, sendo parte essencial no jogo político e intelectual do período clássico. Isso quer dizer que o indivíduo que dominava a arte retórica, isto é, a arte da fala, exercia por meio dela um poder sobre o outro.
Mas, e hoje? Qual é o impacto do discurso como artifício de poder?
Indubitavelmente, o advento da internet trouxe uma drástica mudança comunicacional. Costuma-se dizer que as redes sociais permitiram que todos tivessem voz e fossem ouvidos, e isso representa uma virada de chave emblemática no que tange ao debate e ao discurso. É nessa rede de interação que ocorre o exercício do poder da linguagem, já que, segundo Foucault, o poder está mesmo em todas as relações e interações sociais que existem. Nesses espaços, somos bombardeados por notícias e opiniões constantemente, e levando em conta que vivemos nos tempos sombrios das fake news, fica cada vez mais difícil saber no que acreditar ou refletir sobre como essas notícias e, principalmente, essas opiniões que nos atravessam exercem algum poder sobre nós.
Quando ampliamos essa discussão para o campo político, a questão do poder fica ainda mais latente, pois se antes o discurso político era voltado para a televisão e para os debates, atualmente ele tem mais impacto e alcance nesse ambiente de interação digital. Afinal, hoje em dia você sequer precisa comparecer a um debate eleitoral para se tornar o presidente do país, já que as campanhas de WhatsApp têm se mostrado muito mais eficazes — e perigosas também.
Mais além, os anos de pandemia mostraram como o micropoder discursivo pode colocar em xeque até mesmo aquilo que o homem moderno tomou como uma das coisas mais valorosas: a ciência. O questionamento de cunho essencialmente especulativo e opinativo das medidas científicas — e, de fato, eficazes — de controle de transmissão da Covid-19 por parte de figuras políticas provocou estragos gravíssimos, irreversíveis e completamente evitáveis. Não é só acreditar em uma opinião de pouca ou nenhuma base científica, é fazer com que, sutilmente, todos passem a acreditar cegamente nessa opinião apenas porque confiam na sua palavra.
Nesse sentido, as figuras de poder têm nas mãos a autoridade de ampliar aquilo que é aceitável ou não no que diz respeito ao discurso no âmbito político e social. Aquilo que seria considerado inaceitável corre o risco de cair no campo do normal e virar simplesmente “falação”, até que nos acostumemos com o absurdo e sejamos convencidos disso.
Assim, muitos se utilizam do direito de “liberdade de expressão” para falar o que quiser sem precisar arcar com as responsabilidades do que foi dito — eu aposto que você conhece pelo menos um chefe de Estado que tem um discurso assumidamente racista, machista e homofóbico, que faz apologia à tortura ou ao crime e que nunca foi indiciado por tais falas. E nós acabamos sendo levados por isso, porque somos convencidos pelos afetos, seja por medo ou desconfiança, ou por pura vontade de se deixar dominar.
De fato, as palavras têm poder. Não só os discursos deslumbrantes, elaborados e lidos para a televisão, mas principalmente aqueles que parecem inócuos. Em tempos nos quais os limites da liberdade de expressão estão um pouco borrados e as opiniões têm se potencializado em detrimento do que é científico e comprovado, aquilo que é a princípio inofensivo pode representar um grave risco para toda a sociedade. O verbo é forte, e a falação pode disfarçar um perigo real para uma democracia e para toda a sociedade.
Camila Barreto foi a vencedora do Projeto Escrita 2019. Atualmente estuda Letras na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo.