Por Mainá Santana
Resumo: Não esperem que sejamos sempre pêssegos maduros, de tez suave, flores doces a aguardar os insetos levarem nosso mel: há momentos em que a história deflagra mais do que o presente.
Palavras-chave: Reflexão, Eloquência, Discurso, Espaço de fala
Eram 12h47 quando sentei para trabalhar no pós-almoço. Que deselegância, Mainá, não escovar os dentes, manter o bafo do café de cortesia, que paladar pouco refinado. Sem aparelho, coitada, cada vez mais amarelados, sorte a minha ser preta, já que o preconceito dita sobre a alvura dos dentes em contraste com a pele escura. Suas, minhas, é confuso. Confundiram um amigo, magrela e de alma forte, com um assaltante. Av. Paulista, 12/02/2018. Bateram em sua alvura, pintaram-na de vermelho; meu amigo artista, educador, devorador de poesias e de fala eloquente. Sempre me encantei com a transparência pela qual ele se expressa, por vezes com uma impostação comedida de quem entende a necessidade de se falar bem, apesar de. Apesar de, não houve tempo para discursos naquela chave de braço. Apesar de, levaram seu celular caro, chaves, dinheiro, identidade comprobatória de sua injusta condição: no jogo de verdades criado por aquele dono de loja não cabiam as tantas posses do rapaz. Nem na realidade da ilustre mulher assaltada. Nem na presença dos dignos transeuntes daquela noite pós-cinema, pós-trabalho, pós-carnaval.
A proteção de certos nichos garante a possibilidade de uma pessoa ser assaltada com a validação social e financeira não apenas dos envolvidos, mas de quem não estava lá e desconfia da veracidade da história contada por um rapaz que conhece o poder do discurso. É o dia a dia de tantos não amigos sem o saber ou o espaço instaurado da fala que valida a intervenção militar em locais “importantes” como o Rio de Janeiro; é necessário preservar a segurança dos cidadãos de bem que, curiosamente, não são as pessoas que estão entre tiros há anos. Sempre foi assim. Coloca a população como linha de frente de um sistema frágil e cheio de ódio, onde mãos armadas são muito mais poderosas que qualquer sensualidade de palavras e discursos aprendidos. Poder que não se compreende, estresse com o peso de relações de opressor-oprimido, em que eu preciso ser mais forte do que o outro para me manter vivo. O nicho que é protegido não entende muito bem a moral que se estabelece nesse jogo, nem seus personagens. Talvez tenha sido muito leite com pera na infância, mas o fato é que as micropolíticas por meio das quais as macropolíticas se engendram são perversas e mantidas por cada um de nós, no fechar de olhos, ouvidos e janelas, em não posicionamentos. E o nosso posicionamento diante dos fatos tais quais também custa caro aos investidores de algoritmos na internet e a nós mesmos: de qual massa você faz parte? Eu gosto mais de doce! Eu prefiro a salgada! Gosto daquela que o cara faz no YouTube! Prefiro a receita escrita no Facebook.
O nicho que é protegido não entende muito bem a moral que se estabelece nesse jogo, nem seus personagens.
Vive uma desesperança sorrateira em nosso meio, tornando-nos meros coadjuvantes dos fatos. Eventualmente limpamos o rosto dos feridos, quando não o nosso próprio, damos abrigo e acalento. Não sei se é possível fazer outra coisa nesse momento. O fato é que a dor aumenta conforme a proximidade dos problemas, e o caso do meu amigo, que como eu passa perrengue mas conseguiu alguma ascensão, visibilidade e espaço de fala, toca na ferida de muitos colegas que não vivenciam essa tangente dor diária de outras camadas sociais. Digo sem martirizações e com a consciência de que certas condutas são normatizadas e visíveis apenas para quem as vive.
Ele, eu e tantos outros dentes brilhantes seguimos falando bonito para gente importante, discursando sobre arte e cultura, discutindo sobriamente com os detentores do dinheiro e do saber. Soa irônico, mas não é: tornar tangentes questões de outra natureza de experiência também é educar. No caso, educar pela dor do próximo, infelizmente. Falhamos como sociedade educadora, subimos muros visíveis e indizíveis para separar os diversos modos de vida e dessensibilizamos as crianças, os velhos e os adultos para o que é diferente. Proteger o patrimônio moral, estético, financeiro, material é uma tendência disciplinar e não educativa, embora essas coisas se confundam e, sem dados apresentados ou marcos regulatórios pertinentes, a maior cidade do país retira ou diminui a circulação de 40% de seus ônibus e um estado se torna ingovernável. Mata de São João (BA)*, 102,9 mortes por arma de fogo a cada 100 mil habitantes. Lá na Costa do Sauípe não há intervenção militar, nem em nenhuma das 27 cidades entre as 102 alagoanas presentes no Mapa da Violência do Brasil. Turismo predatório, dizem. Sem importância estratégica, digo. Pelo Rio, sem comissão da verdade, desejam. Afinal, os milhões investidos na pacificação não parecem ter sido muito eficazes ao longo dos anos. Falhamos e não adianta insistir nos erros.
É muita contramão para pouco pensamento crítico desenvolvido em um país que demorará pra lá de um século para ter todos os seus moradores com capacidade de leitura de texto e de imagens. Sim, caso nenhum retrocesso se estabeleça como modismo. Obviamente não tenho respostas prontas para problemas sistêmicos e institucionalizados; como li esses dias pela internet, não dá para lidar com as questões como se estivéssemos discutindo pelo Facebook, a vida real é mais complexa do que a imagem que criamos dela. Ainda assim, este texto versa sobre a ideia de que o incômodo é o primeiríssimo mote para a mudança e, mesmo que tenhamos outros modelos de ação descritos nesta edição, a percepção e a memória do que acontece em outros nichos e lugares de fala ainda são necessárias.
Afinal, todos precisamos perceber quando o racismo, o machismo, a homofobia […] falam por meio de nossas bocas. Quando somos a plateia, quando somos o algoz, quando culpamos um inocente e o punimos numa moeda validada por toda a lógica vigente. Só que a educação não deveria trazer apenas a percepção de si, mas também do outro e de quem é quem nessa relação. Se uma das pessoas despende uma grande energia em se fazer presente, isso é absolutamente lúcido e cansativo: é dura a compreensão de que a sua visibilidade está atrelada a um jogo iniciado com menos pontos. Onde ainda há a necessidade de falar bonito, mesmo com os dentes marcados e com a cobrança interna e aprendida de encontrar a entonação perfeita para quem, muitas vezes, não deseja ouvir.
*Mapa da Violência no Brasil, 2016. Disponível em: <https://www.mapadaviolencia.org.br/pdf2016/Mapa2016_armas_web.pdf>. Acesso em: 25 fev. 2018