Por Homero Santiago

Há acontecimentos que nos parecem de tal maneira inacreditáveis e surreais, como se ultrapassando o senso de realidade, que para exprimi-los justamente costumamos recorrer ao aspecto de nossa experiência que, embora bem real, flerta com a irrealidade: a atividade onírica. Em se tratando de algo muito bom, dizemos que “é como um sonho” (imaginem um argentino alucinado vendo Messi erguer a taça da Copa do Mundo); se for algo muito ruim, tascamos “parece um pesadelo!” (pensem num brasileiro aturdido com o deplorável “tapetão” — para não sair do registro futebolístico — tentado na Praça dos Três Poderes numa recente tarde de domingo). Mui curiosamente, como sugerido, um parâmetro usual para considerar, avaliar e exprimir aspectos de nossa vida real não é senão a irrealidade do sonhar. Nossa experiência recente, aliás, o demonstra. No curso de uma pandemia opressivamente real, todo mundo deve alguma vez ter dito ou ouvido frases do tipo “até parece um sonho!”, “quando esse pesadelo vai acabar?”.

Ora, esse deslizar entre estados aparentemente contraditórios — a vigília e o sono, o real e o onírico — está longe do absurdo. Remete a um fato tão antigo quanto o próprio ser humano e, por isso mesmo, sugere uma interrogação e um problema filosoficamente significativos: dado que sonhamos (e assumamos que todos os humanos sonham), qual será critério para saber se estamos sonhando ou acordados? Umas vezes o sonho é tão real que assim o vivenciamos, em outras a realidade é tão inacreditável que é como se sonhássemos. Como saber se nos encontramos num ou noutro estado? Da insegurança dessa distinção e da ambivalência incrustada em nós, muitos pensadores souberam fazer um instrumento crítico.

Tão logo concebemos a possibilidade de ser um sonho o que entendemos por real, este fica atravessado pela dubiedade, como se atrás de nossa orelha se posicionasse uma pulga a atiçar o exercício da desconfiança com relação às certezas imediatas em que estamos imersos. Sonhar é algo natural que faz perguntar pela não naturalidade do que damos por natural. O poder crítico da experiência onírica, por esse ângulo, é inegável e, por isso mesmo, muitos a manejaram.

É o que descobrimos no mito da caverna narrado por Platão na República: indivíduos estão presos numa caverna e não conseguem se mover; veem somente sombras e imaginam que a caverna e as sombras são toda a realidade; nem desconfiam que fora da cavidade existe um outro mundo, luminoso e real. Com isso, Platão quer sugerir que a verdade não está na imediatez de nossa experiência (esta é um sonho), mas no que ela esconde e só percebemos pelo pensamento (um tipo de vigília). A filosofia, nessa narrativa, vem funcionar como um despertador que nos tira de um sono pesado que é um verdadeiro quiproquó, pois tomamos por real o que são sombras e por irreal o que é a realidade.

Na filosofia moderna, algo semelhante reaparece no chamado “argumento do sonho” de Descartes. O filósofo indaga, em suas Meditações metafísicas, se não poderia acontecer de tudo o que pensamos existir — o mundo, as coisas, o nosso próprio corpo — ser somente efeito de um sonho. É um dos passos que lhe permite estabelecer uma dúvida geral sobre todos os nossos conhecimentos, uma vez que, não havendo critério seguro para distinguir sono e vigília, é possível que tudo seja só um efeito onírico.

Enfim, A vida é sonho é o título de uma das mais conhecidas peças do dramaturgo seiscentista Calderón de la Barca. Ali encontramos uma atitude trágica diante de um mundo em que as certezas se esvaem e mesmo a liberdade humana talvez seja só ilusória. O que garante que, sendo nós realmente determinados pelo destino, nosso sentimento de liberdade não seja apenas o efeito de um sonho persistente? Tem alguns anos, assisti a uma montagem desse texto pelo paulistano Núcleo Bartolomeu de Depoimentos que deixava patente a atualidade da antiga questão, dotando-a de um forte tom político: é possível que a realidade em que vivemos, imersos na ignorância do que acontece à nossa volta, não seja mais que um sonho, um pesadelo que nos envolve e no qual nosso papel é de meros joguetes.

No final das contas, o valor da pergunta “e se tudo for sonho?” é que ela nos obriga a repensar o que consideramos real, normal e natural. Ora a interrogação nos alerta para o descalabro da realidade (tomemos como exemplos os pesadelos narrados pelas distopias literárias), ora desperta a imaginação para o possível e as alternativas de transformação da situação presente (tais são as perspectivas utópicas). Nesse sentido, indagar se tudo que cremos real não é senão sonho, menos que um delírio ou uma reles lastimação individual, pode equivaler a infirmar e problematizar o que parece mais óbvio e sólido; quer dizer, um prudente e ao mesmo tempo ousado exercício de desconfiança que questiona as bases da realidade, da normalidade, da naturalidade, do que consideramos real, normal e natural. Para o pensamento, sonhar pode ser tão necessário quanto estar acordado.


Homero Santiago
Doutor em Filosofia e professor livre-docente de História da Filosofia Moderna na Universidade de São Paulo.

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