“Crônica é um relato? É uma conversa? É um resumo de um estado de espírito? Não sei, escreveu certa vez a autora. Clarice na cabeceira é um convite para descobrir juntos.”
Clarice Lispector nasceu em Tchetchelnik, pequena cidade da Ucrânia, e chegou ao Brasil aos dois meses de idade, naturalizando-se brasileira posteriormente. Formou-se em Direito e trabalhou como jornalista.
Por Clarice Lispector
— O mundo parece chato mas eu sei que não é.
— …
— Sabe por que parece chato? Porque, sempre que a gente olha, o céu está em cima, nunca está embaixo, nunca está de lado. Eu sei que o mundo é redondo porque disseram, mas só ia parecer redondo se a gente olhasse e às vezes o céu estivesse lá embaixo. Eu sei que é redondo, mas para mim é chato, mas Ronaldo só sabe que o mundo é redondo, para ele não parece chato.
— …
— Porque eu estive em muitos países e vi que nos Estados Unidos o céu também é em cima, por isso o mundo parecia todo reto para mim. Mas Ronaldo nunca saiu do Brasil e pode pensar que só aqui é que o céu é lá em cima, que nos outros lugares é embaixo ou do lado, e ele pode pensar que o mundo só é chato no Brasil, que nos outros lugares que ele não viu vai redondando. Quando dizem para ele, é só acreditar, pra ele nada precisa parecer. Você prefere prato fundo ou prato chato?
— Chat… raso, quer dizer.
— Eu também. No fundo, parece que cabe mais, mas é só para o fundo, no chato cabe para os lados e a gente vê logo tudo o que tem. Pepino não parece inreal?
— Irreal.
— Por que você acha?
— Se diz assim.
— Não, por que é que você achou que pepino parece inreal? Eu também. A gente olha e vê um pouco do outro lado, é cheio de desenho bem igual, é frio na boca, faz barulho de um pouco de vidro quando se mastiga. Você não acha que pepino parece inventado?
— Parece.
— Aonde foi inventado feijão com arroz?
— Aqui.
— Ou no árabe, igual que Pedrinho disse de outra coisa?
— Aqui.
— Na sorveteria Gatão o sorvete é bom porque tem gosto igual da cor. Para você carne tem gosto de carne?
— Às vezes.
— Duvido! Só quero ver: da carne pendurada no açougue?!
— Não
— E nem da carne que a gente fala. Não tem gosto de quando você diz que carne tem vitamina.
— Não fala tanto, come.
— Mas você está olhando desse jeito para mim, mas não é para eu comer, é porque você está gostando muito de mim, adivinhei ou errei?
— Adivinhou. Come, Paulinho.
— Você só pensa nisso. Eu falei muito para você não pensar só em comida, mas você vai e não esquece.
Bibliografia:
Clarice na cabeceira: crônicas / Clarice Lispector
Editora Rocco, 2010, Rio de Janeiro.