Entrevista realizada em 28/08/2023
Por Camila Barreto

Inaugurado em julho de 1967, o Cine Belas Artes é um símbolo de resistência da cultura dos cinemas de rua em São Paulo. O local, destinado à exibição de filmes desde 1956, enfrentou fechamentos e reaberturas durante a sua história, suscitando, inclusive, movimentos em defesa do patrimônio cultural que o cinema representa.

Com uma programação alternativa que contempla filmes de diversas nacionalidades, festivais de cinema, noitão de maratonas de filmes, sessões com música ao vivo e até feiras, o Belas Artes é hoje um dos redutos culturais mais importantes da cidade. A experiência ultrapassa o limite da cinematografia e o cinema passa a ser também um evento, um ponto de encontro e de difusão cultural.

Confira a seguir a entrevista realizada com Juliana Brito, diretora-executiva da Companhia Belas Artes, que conta um pouco mais sobre o cinema mais amado de São Paulo.

Para conferir o catálogo de filmes do Cine Belas Artes, clique aqui.

INSPIRE-C: A pandemia foi um baque para o setor cultural, especialmente para os cinemas. Mesmo no período pós-pandemia, a redução do quadro de funcionários e mesmo as dificuldades durante a reabertura foram alguns dos desafios enfrentados. Como foi esse processo de renascimento do cinema de rua?
JULIANA: Pra gente foi muito complicado, porque fechamos desde o anúncio do lockdown, em 17 de março, e a nossa renda foi a zero. Então, pensamos logo no começo da pandemia em como levar o Belas Artes para a casa das pessoas para que pudéssemos ter algum tipo de renda, porque tínhamos todos os funcionários para cuidar, despesas etc. Começamos a fazer alguns leilões de peças dos artistas com quem havíamos conversado, crowdfunding (pessoas que investem recursos financeiros), até que conseguimos abrir um drive-in. Os funcionários foram trabalhar no drive-in e seguramos essa iniciativa o máximo que pudemos.
Quando o drive-in fechou com a reabertura dos estabelecimentos, foi muito complicado, porque o cinema abriu muito devagar. Fomos para o último lugar da fila. Lembro que havia cinco faixas para a reabertura e o cinema estava na quinta faixa. Mesmo contando com uma estrutura muito controlada para o funcionamento, como filtro no ar-condicionado, as pessoas não sentavam próximas umas das outras, só podiam comer sentadas em seu lugar… Mesmo assim, foi muito difícil! Não havia um estudo que comprovasse a eficácia dessas medidas e, somadas à desinformação, potencializou-se o “sofrimento” do cinema.
Como a volta foi muito lenta, tornou-se inviável manter a estrutura do Belas Artes por ser muito caro o seu funcionamento e, por ser um cinema de rua, os custos são mais altos. Se não vem ninguém, a sessão não acontece, mas com apenas uma pessoa a sessão acontece. Então, foi muito complicado o recomeço, e resolvemos esperar uma maior cobertura vacinal para reabrirmos de vez. As produtoras, por sua vez, estavam segurando o lançamento dos filmes e assim caímos num círculo vicioso: as pessoas aguardavam os lançamentos e as produtoras esperavam mais público para lançar novos filmes.
Em 2023, tivemos uma melhora significativa. Janeiro trouxe bons resultados, já que é um dos melhores meses, e os números começaram a se aproximar dos resultados de 2019, mas ainda estamos em torno de 30% a 40% abaixo.

INSPIRE-C: Com o avanço das plataformas de streaming, que se intensificou durante a pandemia, muito se discutiu sobre a hipótese de os cinemas ficarem um pouco mais de lado. Hoje em dia, sabemos que isso não é a tendência de verdade. A que você atribui essa resistência do cinema?
JULIANA: O que a gente sente muita falta é da comunicação de cinema. Por exemplo, havia o Guia da Folha, que publicava a programação diária dos cinemas. A gente percebe que isso faz muita falta na mente das pessoas, de trazer esse hábito de volta para o dia a dia das pessoas. Isso a gente sentiu muito. Por outro lado, não temos a mínima preocupação de que o cinema morrerá. Você pode fazer o que quiser na sua casa, mas nada se compara à experiência cinematográfica.

INSPIRE-C: Qual é o perfil do público que frequenta o Belas Artes hoje em dia? Esse público é diferente do período pré-pandemia?
JULIANA: Não, ele é muito parecido ao do pré-pandemia. Porém, senti falta do retorno do público da terceira idade. Durante a tarde, as salas atendiam esse público e desde o fim da pandemia, eles ainda não voltaram. Mas, de modo geral, o perfil é o mesmo. Quanto ao noitão, conquistamos os mais jovens, inclusive muitos deles nunca tinham vindo ao Belas Artes. O que é maravilhoso.

INSPIRE-C: Desde festivais de cinema de vários países, e também o noitão de maratona de filmes madrugada adentro, até jogos da Copa do Mundo nas telonas, programação com música ao vivo e feiras, o Belas Artes mostra que o cinema é uma experiência para além de só assistir a um filme. Nesse sentido, qual é o papel e o impacto cultural e social do cinema hoje?
JULIANA: É imensurável. A gente sempre percebeu que o Belas Artes não é só para assisitir a um filme e sim para conhecer pessoas, inclusive temos muitas histórias de pedido de casamento. A gente percebe que o Belas Artes atua muito ativamente na vida das pessoas.
Por conta da diversidade da programação, muitos escolhem o filme na hora e nós, da administração, olhamos para isso com muito carinho. Temos uma programação muito diferenciada justamente por isso, ou seja, para que aqui seja de fato um lugar de belas artes para que extrapole a cinematografia. Já recebemos exposições, temos programações mensais de música, o Sonoriza, recebemos shows… Mas claro que com algo na tela para fazermos esse casamento entre o cinema e a arte em geral.
Prezamos muito pela diversidade, pelas outras culturas, para que as pessoas possam abrir a mente, se livrar dos preconceitos, pois a arte e a cultura têm um grande poder de transformar as pessoas e o cinema, muito mais.

INSPIRE-C: O momento atual é de respiro para os cinemas? Quais são as perspectivas para o futuro que parece ser cada vez mais digital?
JULIANA: Eu sinto uma retomada forte do cinema. Acho que o streaming é muito importante, veio para ficar. Haverá diversas versões, o modelo de assinatura veio forte e agora está começando a se equilibrar. Está nascendo um outro modelo, como se fosse um YouTube, ou seja, com propaganda.
Mas o cinema não deixa de ser a principal janela dos filmes, caso de Barbie e Oppenheimer. Vejo tudo isso com muito otimismo, porque o próprio mercado está apoiando a retomada do cinema.

INSPIRE-C: Por fim, o que te inspira?
JULIANA: Para a vida, muitas coisas. Para o Belas Artes, eu gosto muito de receber o feedback das pessoas. Fazer um tipo de programação e ver que deu muito certo. Por exemplo, tivemos a ideia de fazer o Porão do Belas Artes, que é direcionado ao público que gosta de filmes de terror. Até agora lotamos todas as sessões e de vez em quando precisamos abrir outra sala. Tudo isso me inspira quando vejo que o cinema tem muita força. Poder facilitar o acesso das pessoas para que toda essa arte aconteça é muito inspirador.
Recentemente lançamos o filme do Assange em parceria com a Pandora Filmes e poder participar dessa luta pela libertação do Julian Assange é muito inspirador. Participar de algo que é tão significativo para o mundo que busca liberdade para todos nós. Liberdade de expressão, jornalismo livre, enfim, acho que cultura tem um poder muito grande e que não pode ser deixada de lado. Acabo encontrando muita inspiração nos movimentos culturais que trazemos para o Belas Artes.


Camila Barreto venceu o Projeto Escrita 2019. Atualmente estuda Letras na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo.

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