Texto ׀ HOMERO SANTIAGO
O ano é novo, mas velho é o nosso assunto: a questão que ficou em suspenso no texto de dezembro passado e que brevemente retomo. De tempos para cá, à medida que a comemoração do Halloween se disseminou, muitas vozes se ergueram contrariadas. A justificativa é que se trataria de uma tradição sem esteio em nossa cultura ou em nossas raízes. Como sugeri, esse tipo de choque cultural não é incomum. Em 1951, por exemplo, na França, acusava-se o Papai Noel de figura estrangeira e deletéria, a ponto de, certa vez, chegarem a queimá-lo em efígie. Deveríamos fazer o mesmo com relação às bruxas do Halloween, em defesa das tradições brasileiras? Eis a questão deixada no ar no último mês.
Antes de tudo, é bom esclarecer que entendo a bronca dos defensores da “cultura nacional” diante de novidade tão alienígena. Em parte, até compartilho o sentimento. Por quase dois terços da minha existência, o termo “Halloween” não significou, para mim, senão uma curiosidade ouvida em enlatados da Sessão da Tarde ou referência a um seriado de horror que dava calafrios de tão ruim; ou seja, esse negócio de Dia das Bruxas, na vida real, era nicles de bitocles, neca de pitibiriba. Vá lá. Só que, convenhamos, um reles sentimento pessoal (o que seja ou não “brasileiro”) não é razão suficiente para simplesmente vilipendiarmos a data condenando-a à fogueira das tolices humanas. Nesse ponto, definitivamente, aparto-me dos caçadores de bruxas e detratores de abóboras.
Ora, os animosos campeões das raízes brasílicas (seja lá o que isso signifique) bem que poderiam ser mais coerentes e menos seletivos. Retomemos o exemplo do Natal, tratado em dezembro. Reclamam que as bruxas vieram da Gringolândia. Concordo. Mas e o Papai Noel, de onde provém? Talvez acreditem que tenha nascido em Pindamonhangaba e as suas renas pastem em Mato Grosso. Curiosamente, a fúria dirigida às bruxas de outubro não se volta para o velhinho cujo capote invernal é tão inapropriado ao tórrido dezembro tropical que funciona como uma cuspida em nosso modo de ser climático.
Tais são o descompasso e o exotismo da figura do Papai Noel que, na década de 30 do século passado, alguns intelectuais, mormente integralistas, buscaram uma alternativa à aberração. Como em nossos dias bolaram o Dia do Saci para concorrer com o Halloween, os nacionalistas de outrora inventaram a figura do Vovô Índio. Em 28 de novembro de 1932, o jornal O Globo publicou um manifesto com o convocatório título “Vamos fazer um Natal brasileiro?”, e um subtítulo menos singelo, que exalava a mesma belicosidade do caso francês que narrei no texto de dezembro: “Pela deposição de Papai Noel”. Três anos depois, O Estado de S. Paulo noticiou que na capital paulista, em ação natalina promovida pela Força Pública, órfãos foram presenteados pelo Vovô Índio.
Não deu em nada, por supuesto. Esse negócio de raízes e culturas nacionais é coisa para lá de complicada. E sempre polêmica, pois não é fácil enunciar um critério do que seja ou não genuinamente pátrio e muito menos a apresentar a relevância de sê-lo ou não. Odeio galinha de cabidela e adoro pizza e peixe cru. E daí? Que delegado cultural poderá autuar-me em flagrante delito de lesa-brasilidade? Para uso pessoal, guardo comigo o dito: quem gosta de raiz é agrônomo. O patrulhamento pouco tem a ver com cultura; muito pior, decorre de um nacionalismo que, quando não beira o cômico (saudemos o Policarpo Quaresma de Lima Barreto), faz-se perigoso.
Incomoda-me particularmente nos encarniçados opositores do Halloween, assim como nos defensores de raízes e ancestralidades, uma visão meio caricata da cultura, que parece considerada com os olhos daquele que contempla um embrião a ser diligentemente apartado e preservado (visão biologizante), e/ou de quem aprecia uma propriedade a ser bem demarcada e protegida (visão proprietária) contra invasores — não por acaso se chega a falar em “apropriação cultural”. Assim concebidas, as culturas devêm mumiáticas, fixadas como incontornavelmente pertencentes a tal povo ou tal país; como se países e povos fossem coisas naturais e não produtos culturais. Então, recaímos no absurdo: retrocedendo as “raízes” de cada prática, aonde chegamos? Por exemplo, o que será “brasileiro”, já que a própria ideia de Brasil não tem mais de poucos séculos e, em termos formais, uns três? Retrocederemos aos indígenas, argumentarão. Mas então eles nada herdaram, tudo criaram ab ovo? Eles mesmos não arribaram no continente, ao que tudo indica, vindo de alhures? O absurdo vai longe e conduz finalmente a Adão e Eva, à descoberta da mais supina e vácua origem ou ancestralidade.
Em lugar dessas visões biologizante e proprietária, gosto de conceber a cultura como indefinida, isto é, qualquer coisa pode ser cultural justo porque a natureza não determina o que o é, e sem dono, algo que, gerado pela atividade humana, está disponível a ser apropriado por qualquer ser humano.
Já que as bruxas vieram para ficar, em vez de só animosamente caçá-las, cuidemos de aprender com elas.
Homero Santiago é doutor em Filosofia e professor livre-docente de História da Filosofia Moderna da Universidade de São Paulo.
Diagramação ׀ RONALDO CAMPOS
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