Por Homero Santiago

Já se tornaram tradição outubrina as cômicas diatribes dirigidas ao Dia das Bruxas ou Halloween, o qual desde alguns anos — sabe-se lá por que cargas de poção mágica — passou a ser celebrado entre nós, espalhando pelas ruas um monte de fantasias mequetrefes e abóboras caracterizadas que não assustam nem criancinhas.

Como explicar o azedume sazonal? Posso estar enganado, mas me parece que se deve a um princípio que soaria mais ou menos assim: o Halloween não tem nada a ver com as nossas “raízes” nem com a “cultura brasileira”; é só mais uma bobagem gringa que estamos a macaquear.

O problema é que uma parcela relevante dos brasileiros nunca ligou para isso, de modo que os jerimuns aos poucos se transportaram dos cenários de shopping centers para as ruas, lojas, academias de ginástica (prevejo que já, já edifícios residenciais se enfeitarão para a data). De nada adiantou tentarem usurpar o Dia do Saci, comemorado por determinação legal no mesmo 31 de outubro do Halloween. Muito casuisticamente, devem ter pensado: já que não dá para vencer, entremos na festa, ressignificando-a. Não rolou. Ninguém duvida que os cônicos chapéus anglo-saxões tenham levado a melhor — são bruxescos, não bruxuleantes — sobre a carapuça encarnada do negrinho uniperna e multiastuto. Nem que em seus lábios um vape viesse substituir o pito a coisa ia dar certo.

Então, fazer o quê? Simplesmente esquecer a bronca?

Ora, reações animosas desse gênero não são raras, e às vezes culminam em atitudes bem mais estrepitosas. Foi o que aconteceu num longínquo Natal na cidade francesa de Dijon. Pasmem! Qual outrora se fazia (não sei se ainda o fazem) com Judas, malharam o Papai Noel e o mandaram à fogueira. Ao causo inaudito, o antropólogo Claude Lévi-Strauss dedicou um engraçadíssimo ensaio (O suplício do Papai Noel, editora CosacNaify), que retomo.

Na edição de 24 de dezembro de 1951 do France-Soir, o enviado especial do jornal descreveu a cena:

“Papai Noel foi enforcado ontem à tarde nas grades da Catedral de Dijon e queimado publicamente em seu átrio. Essa execução espetacular se realizou na presença de várias centenas de internos de orfanatos. Ela contou com o aval do clero, que condenara Papai Noel como usurpador e herege. Ele foi acusado de paganizar a festa de Natal e de se instalar como um intruso, ocupando um espaço cada vez maior. Censuram-no, sobretudo, por ter-se introduzido em todas as escolas públicas, de onde o presépio foi meticulosamente banido.

Às três horas da tarde do domingo, o infeliz velhinho de barbas brancas pagou, como muitos inocentes, por um erro cujos culpados eram os que aplaudiram a execução. O fogo queimou suas barbas e ele se esvaiu na fumaça”.

As razões do ato estampavam um comunicado distribuído aos presentes. “Não se tratou de um espetáculo”, explicava-se, “e sim de um gesto simbólico.” Papai Noel foi sacrificado em holocausto porque “a mentira não pode despertar o sentimento religioso na criança e não é, de modo algum, um método educativo”. É preciso acabar com a besteira de prometer às crianças que, se forem boazinhas, ganharão presentes do Papai Noel. Contra esse deplorável toma-lá-dá-cá moral e, principalmente, o veio pagão contido no protagonista, defendamos as raízes católicas e cristãs. “Para nós, cristãos”, concluía o argumento, “o Natal deve continuar a ser o festejo que comemora o nascimento do Salvador.”

Para reconstituir o contexto em que a ira floresceu, o antropólogo aciona os seus dotes de erudição e senso crítico. Entre excursos por tradições medievais e agudas observações sobre novidades recentes, ficamos sabendo que, naquela altura, era natural à opinião pública francesa implicar com os ritos ligados à figura de São Nicolau (Papai Noel é o seu dublê), já que provenientes do norte da Europa e, pecado-mor, tingidos de paganismo germânico e anglo-saxão. Comprovação eloquente: o principal dicionarista francês do século XIX, Littré, ao descrever no verbete “Natal” o “pinheiro enfeitado” para a ocasião, demonstrava jamais ter visto um; compreensível, explica o Lévi-Strauss: tratava-se de tradição germânica que arribara na Inglaterra no século XVIII, transportando-se para a América do Norte; na França católica, chegara muito tardiamente.

Pois o caso de Dijon foi a ponta de uma ampla voga condenatória da saliência que o Papai Noel fora assumindo no pós-guerra em virtude da influência norte-americana. Ruas e casas iluminadas, papéis de presente específicos para a data, cartões de boas festas, atores fantasiados a receber pedidos de presentes nas lojas de departamento — em suma, muito daquilo que o bom gosto francês ridicularizava como típica jequice estadunidense vinha se tornando rotineiro; o que, por óbvio, ofendia a cultura nacional e os brios gauleses.

Fico me perguntando: contra as farsescas abóboras, os adornos bobos e a descarada mercantilização que tudo empesteia, seria o caso de defender as “nossas raízes” e a “cultura brasileira” com o mesmo ardor daquele pessoal de Dijon?

Em janeiro, voltamos ao assunto. Por ora, boas festas!

 

 


Homero Santiago é doutor em Filosofia e professor livre-docente de História da Filosofia Moderna da Universidade de São Paulo.

Foto capa de LuAnn Hunt/Unsplash
Wikimedia Commons: Saci_Perere_por_Marconi
Imagem: Saci Urbano, Queremos Pensamentos/Wikimedia Commons
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