Por Gustavo Izidio Silva

“Meu amor é assim, sem nenhum pudor. […]
Por hora dou é grito e susto. […]
Pouca gente gosta.”
Um jeito, Adélia Prado

Bagagem é o título que alcunha majestosamente a primeira antologia poética de Adélia Prado, publicada no ano de 1976. Todos os poemas ali inseridos exploram a beleza das lembranças e vivências de um eu lírico autobiográfico, isto é, são textos de estilística admirável que rememoram a vida de Adélia em sua cidade natal, Divinópolis, em Minas Gerais.

“Tudo que eu escrevi até Bagagem não tem nenhum valor literário. São coisas que têm importância, para mim, afetiva, de um bom tempo da minha vida.” (Adélia Prado)

É nítido, porém, que seu inestimável reconhecimento enquanto poetisa não se dá exclusivamente pela bonita inserção de lembranças puras às páginas amareladas de um livro ou por desentranhar a poesia adormecida do cotidiano. Adélia Prado alcança dentro do leitor um espaço, entre a carne, o osso e a alma, de pura sensibilidade, paixão e sutileza. Um recôndito lugar, empoeirado e esquecido, mas, inusitadamente, o real motivo pelo qual insistimos tanto em viver. Um centro de significação de que não posso descrever senão por meio de sua própria poesia. Se a linguagem tem suas limitações, ao menos os poemas de Adélia logram aproximar-se desse tão necessário motivo de nossas vidas. Sua poesia, repleta de memória afetiva, alcança o sublime e a iminência da vida humana, conferindo-lhe significação.

Apoiando-me, portanto, em sua obra, dedico uma menção especial ao título “O que a musa eterna canta”, o qual já é, em si mesmo, uma intensa devoção à matéria poética ocidental.

O nascimento da poesia no Ocidente é repleto de imagens e sensações que persistem na trajetória humana graças às Musas, divindades gregas vinculadas ao prazer e ao conhecimento evocados pela literatura. Os gregos se valiam da forte crença de que essas divindades acompanharam a trajetória humana desde seus primórdios e, desse modo, podiam transmiti-la através das gerações seguintes. Para tanto, elas se aproximavam espiritualmente dos poetas que, uma vez inspirados por suas vozes, poderiam possibilitar que aquilo de mais prosaico e necessário à humanidade jamais fosse perdido. Pela força da palavra cantada ou recitada, as memórias e vivências se alojavam pacificamente nas dobras da memória e se cristalizavam sob o tecido da sabedoria.

Sócrates, na obra Fedro, de Platão, menciona esse efeito sensível suscitado pelas Musas:

“Um terceiro tipo de posse e loucura provém das Musas, o qual se apodera de uma alma terna e inviolável, desperta-a para um frenesi dionísiaco dos cantos e outras poesias que glorifica os feitos do passado, e através destes educa as novas gerações”.

Dessa forma, reitero: a poesia se aproxima do mais puro elemento humano, mas jamais o alcança. E é essa constatação que dá forma ao poema de Adélia. Sua pretensão é a mais prosaica: falar do ser humano, mas consciente de que sua fala nunca o alcançará como gostaria. Se vincula à ânsia mais que suficiente de tentar entender o próprio círculo de sua vivência, nunca o mundo em si, que nos escapa. É bastante, para o eu lírico, se apropriar da linguagem, tão ampla e perspicaz, para se concretizarem pequenas necessidades:

“letras eu quero é pra pedir emprego,
agradecer favores,
escrever meu nome completo”.

E essa humildade, que parece ser simples e carente, é, na verdade, o sustentáculo que alicerça toda a nossa literatura e, por consequência, todo o mundo que construímos. Vemo-la, a realidade, nascer e se formar, sem que para isso tenhamos acesso integral à sua essência. Pensamos: “quero entender o mundo”. No entanto, mesmo que essa pretensão nunca seja efetivamente conquistada, parece-nos suficiente o adágio: “quero entender o mundo.”

No mais, não são os grandes fenômenos possíveis que nos dão refúgio; não são as recordações integrais que nos concedem alegria; tampouco a compreensão absoluta do “eu” e do mundo. O que nos realiza é o mais simples; as alegrias sobrevêm ao ato de rememorar com certo esforço as memórias que insistem em se dissolver com o tempo; é o desconhecido do mundo e de nós próprios que projetam caminhos novos e um horizonte perscrutável.

Assim, minha fome é somente outra: quero viver uma vida viva.

Concluo com os versos iniciais do poema, cuja inovação aqui em apresentar-lhes é possível graças à licença poética que me cabe (e nos cabe):

“Cesse de uma vez meu vão desejo
de que o poema sirva a todas as fomes.
[…]
O mais são as maltraçadas linhas”.


Gustavo Izidio Silva é um grande apreciador da literatura brasileira. Atualmente estuda Letras – Português e Latim na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo.

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