Por Homero Santiago
Haverá o que comemorar no bicentenário da independência do Brasil? Francamente, muito pouco; a menos que tenhamos em mente o significado literal da palavra “comemoração”: em vez de ocasional festejo, rememorar em conjunto. Por ser capaz de despertar a reflexão, esse exercício é uma forma de escapar aos extremos, tanto o ufanismo patriota quanto o menosprezo inconsequente.
O termo “nação” deriva do latim natio, que por sua vez remete a nascor (nascer) e natura (o ato de nascer, a natureza). Inicialmente, a ideia de nação designa um grupo que conhece uma origem comum e certa homogeneidade cultural, algo próximo do sentido ainda hoje presente quando falamos em “nações” indígenas. Só com o estabelecimento dos Estados modernos, a partir do século XVI, o termo começa a ganhar outros sentidos até firmar-se, após a Revolução Francesa, naquele que ainda utilizamos: um corpo social dotado de autonomia política, com território, governo, leis (o que, vale sublinhar, não exige unidade cultural nem linguística; alguém, por exemplo, pode ter nacionalidade italiana sem conhecer da Itália senão a massa).
O contraste entre esses dois campos semânticos é marcante: ao passo que o primeiro enfatiza uma matriz natural, ainda que sem se reduzir a ela (a natureza produz indivíduos, não nações, dizia um filósofo), o segundo põe a descoberto que uma nação é um construto inteiramente político.
Em sendo assim, vem a pergunta: o que sustenta uma nação unitária que persevera por séculos e que os seres humanos integram sem, a rigor, sobre isso serem consultados? É praticamente impossível assinalar uma causa única para a origem e a persistência de uma nação. Entretanto, não parece errado identificar como um fator decisivo o reconhecimento mútuo, por um grupo social, de uma vida comum; um modo de viver e compreender o mundo que nos desperta o sentimento de pertencimento e permite-nos reconhecer outras pessoas como igualmente pertencentes. A força de persistência de uma nação reside em boa medida nesse compartilhamento de um destino coletivo. A nação é uma das maneiras que os seres humanos encontraram de construir, para lá da bruta solidão dos indivíduos encapsulados, uma vida em comum.
Ora, desde que adotemos esse ponto de vista, a nossa situação nacional torna-se flagrantemente problemática. As razões históricas não são secretas e os brasileiros as conhecemos bem. Um processo de independência duvidoso culminou numa monarquia esquisita, patrocinada pelo antigo colonizador e em prejuízo dos planos mais ousados para a nova nação. Nossa primeira Constituição nasceu por outorga do próprio imperador, que se concedeu poderes especiais, criando um arcabouço institucional que até hoje causa problemas (clique para acessar o artigo O famigerado artigo 142), e estabeleceu o voto censitário que pela renda selecionava quem podia participar da vida política. Sobretudo, o Brasil tornou-se independente mantendo a escravidão, um hediondo arranjo cujas consequências chegam até nós. Nem é preciso entrar pela República, pela guerra de Canudos, por repetidos golpes de Estado e ditaduras, para convencer os leitores de que nosso país plasmou-se sob o signo da exclusão e do subjugamento de enorme parcela da população, tendo em sua história a violência funcionando como fiadora última da lei e da ordem. Numa palavra, a desigualdade, o não comum, está em nosso DNA.
Quer dizer que nada temos a comemorar? Não vejo assim. Ao longo de dois séculos, realmente uma nação nasceu e consolidou-se. Muito se fez, e nem tudo que foi feito é ruim. Para ficar num só exemplo, não vejo por que não saudar tantos aspectos de nossa atual Constituição que, embora nascida de um processo de redemocratização penoso e ambíguo nos anos 1980, deu forma institucional a uma longeva tradição de lutas por direitos sociais (em especial, saúde e educação) e liberdades civis. Não perceber o valor de feitos desse tipo (e foram muitos em nossa história) é desinteligência ou má-fé. É inegável que a vida nacional brasileira marcou-se menos pela mitológica cordialidade do que pela ação aguerrida dos que se levantaram contra a exclusão, a desigualdade, a violência, às vezes pagando caro pela ousadia. Essas gerações de brasileiros que nos antecederam forjaram muito do que podemos festejar e devemos recordar (para juntar os dois sentidos do verbo “comemorar”) no bicentenário de nossa independência: legaram-nos condições mínimas para uma vida em comum, garantias contra a barbárie.
Embora indubitavelmente vivamos numa nação imperfeita, ao que tudo indica — e isso não envolve nenhum tropismo nacionalista —, é em seu interior que os nossos descendentes continuarão vivendo e, a depender de nossos posicionamentos de hoje, herdarão oportunidades maiores ou menores de felicidade. Justo por ser construto humano, a nação não é uma fatalidade; nela, tudo é histórico, os rumos podem ser reorientados e o panorama, transformado pela ação dos cidadãos. Tomara que façamos por merecer o que nos foi legado e que os próximos 200 anos sejam melhores que os anteriores.
Homero Santiago
Doutor em Filosofia, o professor Homero Santiago é livre-docente de História da Filosofia Moderna na Universidade de São Paulo.