Por Homero Santiago
Uma das estórias mais saborosas de Guimarães Rosa intitula-se Famigerado. Um cabra temido é assim alcunhado e quer tomar satisfação, só que não sabe o significado da palavra. A engenhosidade da breve narrativa está em alcançar a mais alta tensão, entre o dramático e o cômico, jogando com a ambivalência da palavra “famigerado”, que designa a pessoa famosa e insigne tanto quanto aquela que tem má reputação e não presta.
Guimarães nada tem a ver com as nossas embrulhadas presentes, mas como não recorrer a um exímio escritor quando fatos equívocos desafiam as palavras? Pois não me ocorre melhor adjetivo que “famigerado” para qualificar o artigo 142 de nossa Constituição Federal, que, nos últimos anos, tornou-se pivô de uma inusitada polêmica interpretativa e saltou dos vade-mécuns jurídicos para as ruas. Por esses dias ainda, entre agosto e setembro, o artigo pululou em bocas que clamam a assim chamada “intervenção militar constitucional” e, inversamente, recebeu os impropérios dos que nele enxergam uma acabada aberração. Esquisito e ambíguo textinho! Para uns, base da preservação da ordem democrática; para outros, uma injustificável tutela sobre a democracia.
Vamos ao pomo, digo, ao texto da discórdia:
“As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem.”
É sintomático que aí, ao se definirem as funções das Forças Armadas, ocorra o único uso da palavra “pátria” na Constituição. Nas vírgulas esconde-se o diabo, e um minúsculo signo revela um grande trauma. A redação do artigo, que mantém muito de seu correlato na Constituição de 1967, outorgada pela ditadura, foi imposta pelos militares durante o processo de redemocratização do país como garantia de um posto privilegiado em nossa arquitetura institucional.
Segundo alguns, o texto prevê a possibilidade de uma ação militar com o objetivo de restabelecer a ordem constitucional quando ameaçada, entre outros casos, por insolúveis embates entre os poderes. Por exemplo, no entender do jurista Ives Gandra Martins, todo poder que se sentir constrangido, especialmente por outros poderes, pode convocar as Forças Armadas para, agindo como “poder moderador”, “repor pontualmente a lei e a ordem”. A rigor, não se trataria de ruptura, mas de mera reparação da harmonia institucional.
A ideia de um quarto poder, o moderador, além do executivo, do legislativo e do judiciário, é uma originalidade de nossa Constituição imperial de 1824, que o reservou com exclusividade ao imperador à guisa de “chave de toda a organização política”, especialmente porque o seu titular cuidaria do “equilíbrio e harmonia” entre os demais poderes. Ademais, segundo a mesma carta, “a pessoa do imperador é inviolável e sagrada: ele não está sujeito a responsabilidade alguma”. Configurava-se assim aquilo que a tradição nomeia um poder legibus solutus, uma instância que tudo julga e, por isso mesmo, não pode ser julgada, estando acima das outras esferas de governo. Formalmente, esse poder imperial extinguiu-se com o império, em 1889; não obstante, ao longo da história republicana, foi-se firmando — pela teoria e pela persuasão das armas — uma corrente interpretativa que atribui esse poder moderador às Forças Armadas. É tal posição meio terrena meio sacra dos militares que hoje, em meio à bruta querela entre poderes, revestiria de legalidade a sua intervenção moderadora.
Voltemos ao artigo 142. Por que a alguns soa ele aberrante? É que uma armadilha se esconde na vagueza da palavra de “ordem”: ela não é definida no texto constitucional e por isso precisa ser interpretada. Contas feitas, se a instituição militar for mesmo a guardiã última da ordem, cabe a ela a prerrogativa de ser também intérprete de seu significado, ou seja, existirá grave ameaça à ordem constitucional, a ponto de legitimar a ação militar, quando os comandantes das Forças Armadas assim o decidirem (e conseguirem mobilizar as tropas, por óbvio). Sendo assim, patenteia-se uma grotesca inversão na ideia democrática de que a política garante e regula o uso da força. Pelo artigo, ao contrário, é como se a força garantisse a política, exercendo detentor da força um poder moderador legibus solutus que lhe facultaria emitir a última palavra sobre a ordem e os ordenamentos políticos da nação. Mal comparando, é a velha crença de que o silvo do porrete é remédio para tudo. Desse modo, a soberania, que, como afirma a Constituição, emana do povo, é embotada e na prática cai nas mãos de uma classe particular; tanto mais que, se por um lado é difícil identificar o “povo”, por outro é fácil saber quem são os militares. E no frigir das decorrências, um gaiato até poderia imaginar que quem decide se o povo vai viver numa democracia ou numa ditadura são as suas Forças Armadas.
Estamos bem arranjados! Famigerado artigo 142 da nossa Constituição!
Homero Santiago
Livre-docente pela Universidade de São Paulo, onde é professor de História da Filosofia Moderna. Possui graduação, mestrado e doutorado em Filosofia pela Universidade de São Paulo.