Por Luciano Porto
Com setenta anos de reinado, a sucessão da Rainha Elizabeth II talvez tenha sido a mais planejada do mundo. Há anos, a Operação London Brigde organizava a inevitável transição geracional daquela considerada uma das mulheres mais poderosas do planeta. Ainda assim, o êxito de sua nobre sucessão é bastante desafiador, como ocorre também em sucessões empresariais e familiares.
Na realidade plebeia, pode estar aí uma lição, recomendando assumirmos o controle possível de nossas potenciais sucessões individuais, agindo para diminuir os riscos trazidos por uma irrefreável sucessão na empresa familiar e no patrimônio da família. Exercer a sua governança sucessória é fazer uso dos instrumentos que podem permitir gerir aspectos decisivos da sua própria sucessão.
Rei morto, rei posto. Quem assume o controle imediato do patrimônio herdado? Quem controla o caixa? As aplicações financeiras, seus resgates e reinvestimentos? Qual liberdade tem quanto à destinação dos recursos? O perfil de risco a ser adotado no portfolio de investimentos? Há seguro de vida? Previdência privada? Conta conjunta? Quem sabe as informações? Onde está o documento do túmulo? Quem vai providenciar o enterro? Quem pagará os boletos? Quem escolherá a escola dos filhos? Quem cuidará dos pets? Quem assume a guarda e a manutenção dos bens até a partilha?
A documentação sobre tudo isso talvez estivesse organizada naquela mala 007, com que o setentão Charles chegou a Balmoral na manhã final. Aos plebeus, é preciso organizar também. Aos mais atuais, há a opção de usar arquivos digitais compartilhados na família.
A governança sucessória deveria ser uma rotina da vida patrimonial, como são a composição e o perfil de risco dos investimentos, financeiros ou não, e a escolha do regime conjugal de bens.
Nobres ou plebeus, não somos eternos, como nos alertou a pandemia. A opção pela omissão na sua governança sucessória implica na tomada de um risco, cujo custo pode se provar bastante superior à coragem do enfrentamento da inevitável realidade sucessória de todos nós.
Em tempos ESG, o cuidado em organizar a sua sucessão pode ser até mesmo um dever fiduciário do fundador perante os seus stakeholders, fazendo uso de instrumentos que somente a ele estão disponíveis.
Mas a governança sucessória vai além de cuidar da papelada. É preciso agir para dar vida ao conteúdo da papelada. É preciso falar, conversar, acolher, integrar. Com integridade e transparência, o/a fundador/a pode expor a sua intenção sucessória aos seus potenciais herdeiros, a forma como está planejando a sua sucessão. Assim, com o engajamento dos sucessores num planejamento sucessório feito com transparência e clareza, esse plano de ação poderá ganhar legitimidade e minimizar o potencial de risco de litígios futuros.
Goste-se ou não da monarquia ou da rainha, era uma liderança com senso de dever, de responsabilidade, dedicada ao seu propósito. A coerência de propósito de continuidade da empresa familiar é também demonstrada no gesto de implantar e liderar um programa de capacitação e qualificação de herdeiros e herdeiras. No Brasil atual, acabamos de assistir uma transição geracional assim na Globo, onde uma nova geração Marinho assumiu a liderança executiva do grupo, dentro de um programa de governança sucessória iniciado há uma década.
Um dos principais temas a serem encarados num programa de governança sucessória é a alocação de resultados financeiros entre herdeiros que trabalhem na empresa familiar e herdeiros que sejam acionistas não executivos. Numa analogia monárquica, pode haver um filho que trabalhe a vida inteira na firma da família e se prepare para ser o CEO, enquanto um outro filho escolha se mudar para a Califórnia e se dedicar a seus negócios individuais, distanciando-se do cotidiano dos negócios da família.
Nessa circunstância, é preciso ter clara a distinção entre a distribuição patrimonial entre herdeiros e a remuneração do trabalho de herdeiros que trabalhem na empresa familiar, que podem abranger salários, bônus e opção de compra de ações, por exemplo. A clareza dessa distinção ao longo dos anos minimiza o potencial de litígios sucessórios.
Um outro instrumento disponível ao fundador pode ser organizar o seu testamento distinguindo entre ativos operacionais, como as empresas operacionais, e ativos patrimoniais, como investimentos financeiros e imóveis. Se o valor de avaliação for similar, o testador pode optar por priorizar deixar ativos patrimoniais para alguns herdeiros, e ativos operacionais para outros herdeiros como, por exemplo, os herdeiros que trabalhem na liderança desses ativos operacionais, como executivos da empresa familiar.
Para lidar com sucessões abruptas e imprevistas, como ocorrido com a Princesa Diana ou, agora aqui, com Marília Mendonça e João Paulo Diniz, há a possibilidade de organizar um testamento que separe as funções de cuidado emocional com os herdeiros menores e de gestão do patrimônio deixado a esses menores. O testamento pode atribuir a uma pessoa a guarda e o suporte emocional aos filhos menores e demais dependentes e, em paralelo, atribuir a outra pessoa a gestão financeira do patrimônio deixado. Com esse cuidado, pode ser viabilizada uma combinação de suporte afetivo e educacional aos filhos, com uma gestão especializada do patrimônio que os sustentará.
Porém, mesmo com todos esses cuidados, performance passada não é garantia de performance futura. Rainha morta não significa, necessariamente, rei posto. É o que nos deixa evidente o tour de force a que o novo rei Charles III tem se dedicado nesta primeira semana. Um tour de legitimação social para a majestade que herdou, junto aos stakeholders da “firma”. Numa sucessão empresarial, também caberá ao sucessor apresentar-se e ganhar o apoio e legitimação dos clientes, fornecedores, financiadores, investidores, funcionários, colegas e vizinhos.
Todas essas providências podem ser úteis para quem tenha um patrimônio material expressivo. Mas como poderiam ser úteis para uma pessoa que não tem essa situação financeira e que queira cuidar do futuro de seus filhos na hipótese da sua ausência? Qualquer adulto que tenha dependentes deveria organizar a sua governança sucessória. Primeiro, antes de qualquer outra providência, deve cultivar uma rede afetiva que possa zelar pelos seus dependentes na sua ausência. E, quando for possível, pode começar fazendo um seguro de vida em favor de seus dependentes, que possa auxiliar no custeio das despesas futuras.
Enquanto estamos vivos, temos à disposição instrumentos jurídicos, financeiros e afetivos que nos permitem poder ter algum controle sobre as nossas sucessões. Cabe a cada um de nós decidir se quer ou não exercer a sua governança sucessória, lidando com a finitude humana que cada um de nós encarará um dia, seja plebeu ou nobre.
Luciano Porto é especialista em ESG. Advogado e Conselheiro Independente CCA+ IBGC; texto originalmente publicado na revista Exame; www.lucianoporto.com.br