Por Homero Santiago
A água é condição fundamental para a vida. Dos quatro elementos que, segundo antiga tradição, seriam os constituintes da natureza de todas as coisas (água, fogo, terra e ar), o elemento aquoso parece sobressair. Não é por acaso que haja um dia mundial da água, celebrado a cada 22 de março, nem que de tempos em tempos os meios de comunicação voltem a relatar discussões sobre a presença de água noutros astros: embora a existência de água não implique a existência de vida, é certo que sem a primeira a segunda torna-se impossível.
É provável que a percepção dessa impressionante potência tenha inspirado Tales de Mileto, que viveu no século VII a.C. e foi consagrado pela historiografia como o primeiro filósofo, à tão inusitada quanto ousada afirmação de que “tudo é água”.
Segundo o testemunho de Aristóteles (século IV a.C.), “os que por primeiro filosofaram, em sua maioria, pensaram que os princípios de todas as coisas fossem exclusivamente materiais. De fato, eles afirmam que aquilo de que todos os seres são constituídos e aquilo de que originariamente derivam e aquilo em que por último se dissolvem é elemento e princípio dos seres, na medida em que é uma realidade que permanece idêntica mesmo na mudança de suas afecções. Por esta razão eles creem que nada se gere e nada se destrua, já que tal realidade sempre se conserva” (Metafísica, 983 b, tradução Marcelo Perine, Edições Loyola).
Ora, a forma de pensar privilegiada daqueles que a história da filosofia costuma denominar “pré-socráticos” foi a cosmologia, isto é, a interrogação sobre a constituição do cosmos ou realidade. Nesse âmbito, sobrevém a radical tese de Tales. Em primeiro lugar, ela envolve a compreensão da unidade de todas as coisas: não haverá nada que não seja integrante de uma mesma totalidade – tudo é o mesmo, e este mesmo é água. Por que água? Não havendo uma resposta segura, estamos livres para especular um pouco a partir das palavras de Aristóteles.
Abrindo-se à inteligibilidade da vida do cosmos e querendo desvendar as suas entranhas, a primeira filosofia dos gregos não somente investiga o princípio dessa vida como, peculiarmente, recusa situá-lo fora do próprio cosmos; por exemplo, num ser que tivesse criado o real por um ato instantâneo ou que o comandasse lá do alto do monte Olimpo. A totalidade não baixa ao mundo à maneira de um dado transcendente, nem como uma categoria universal a impor-se sobre as coisas singulares. Para Tales, o elemento totalizante, a água, é um singular que faz o mundo, pertence ao mundo e nele continua, espalhando-se incessantemente, assumindo variadas formas e produzindo a multiplicidade que percebemos – um mesmo diversificado que “sempre se conserva”, para falar com Aristóteles.
A consistência da água é de tal sinuosidade que, sempre a escorrer sem jamais se deter, adapta-se e atravessa ínfimos desvãos (uma reles goteira o comprova); ao mesmo tempo, é de uma moleza impetuosa a que não resiste a mais pétrea dureza; ela rebenta nas coisas (no sentido em que se fala do mar) e as destrói para delas produzir novos seres; por fim, sem o contato da água, sem ser umedecido por ela, nada nasce nem sobrevive. A água está em tudo, e por isso Tales diz que “todas as coisas estão cheias de deuses”, quer dizer, estão todas as coisas cheias de água! Deuses úmidos que nos tocam e que tocamos; estão em nós assim como nós estamos neles. A água é princípio de tudo. Não no sentido temporal daquilo que ficou no início dos tempos, mas num sentido forte: sempre a mesma e sempre diferente, pela eternidade – permanência e mudança.
É bem essa singularidade do elemento água que dá a matéria de um charmoso poema de Guimarães Rosa intitulado “Águas da Serra” (incluído no volume Magma), raro exercício poético de um mestre prosador:
Águas que correm,
claras,
do escuro dos morros,
cantando nas pedras a canção do mais-adiante,
vivendo no lodo a verdade do sempre-descendo…
Águas soltas entre os dedos da montanha,
noite e dia,
na fluência eterna do ímpeto da vida…
É como se o movimento aquoso fornecesse o melhor modelo do espraiar-se da própria vida. Libertando-se, as águas escorrem por entre os dedos de deuses sonolentos, de per si descem ao real, umedecendo-o, vivificando-o; são “forças livres” e jamais bloqueadas, escapam por todos os vãos; geram os amores, correm sob a forma das lágrimas. Elas constituem o “sem-fim”, o infinito real que percebemos e nos envolve. Ave, água.
Para terminar com uma nota que desce da esplendorosa umidade à sequidão de nossos dias, é por isso que tanta espécie causa, num misto de temor e revolta, a maluquice ventilada por alguns interesseiros de entregar a gestão de nossas águas e dos esgotos (ainda que suja, a água continua sendo vital) a entes e pessoas particulares, ou seja, privatizar a mais básica condição da vida, transformando esse elemento vital numa reles mercadoria. Que insanidade! Seria como privatizar deuses! Pelo contrário, convém que aquilo de que tudo é feito continue, de direito, comum a tudo, a nós e às coisas. Tales ficaria feliz.
Homero Santiago
Doutor em Filosofia e professor livre-docente de História da Filosofia Moderna na Universidade de São Paulo.