Por Homero Santiago
Ainda que aparentemente simples, essa interrogação concentra alguns dos mais antigos problemas da reflexão ética e remete a um dado crucial da maneira como frequentemente entendemos a condição humana. De fato, não seria isso que chamamos de liberdade o incontornável sentimento de que somos seres capazes de tomar decisões e fazer escolhas, um elemento fundamental a nos distinguir, por exemplo, dos animais? Ademais, não costumamos reconhecer na privação de liberdade um aspecto degradante da situação de um ser humano?
Mas o que será isto, a nossa liberdade?
Decerto não pretendo arriscar uma resposta simplória a uma questão milenar. Limito-me a um convite: já que o sentimento de liberdade nos é inevitável, consultemos essa nossa experiência, ou pelo menos alguns aspectos dela.
Todos nós, em maior ou menor grau, com mais ou menos constância, temos consciência de nossos atos e de realizá-los segundo um objetivo ou uma finalidade. Por exemplo, no momento em que escrevo este texto, sei que o escrevo e sei que o escrevo porque desejo oferecê-lo aos leitores. Portanto, sou cônscio de que escrevo e de por que escrevo. Além disso, numa espécie de acréscimo à ação e à consciência dela, sinto que, apesar de ter escolhido realizar essa tarefa, poderia ter escolhido o inverso, isto é, não realizá-la.
Esse tipo de experiência simples varia imensamente. Não obstante essas variações, sempre reencontramos uma estruturação básica de nosso agir que remete ao que comumente se denomina “liberdade”. Uma liberdade que, por isso mesmo, é de imediato concebida como a posse de uma vontade que pode ser exercida ou não; ou seja, para usar designações tradicionais, uma livre vontade ou um livre-arbítrio. A liberdade surge assim, prioritariamente, como um poder de escolha: fazer ou não fazer isso ou aquilo.
Entretanto, prosseguindo a consulta a nossa experiência, é fácil constatar que ela não se esgota nesse tipo de liberdade. Por vezes, inclusive, sugere o contrário. Retomemos o exemplo: neste momento, eu sei o que estou fazendo (escrevo) e sei por que estou fazendo o que faço (quero compor um texto). Por que, todavia, desejo isso? Posso dizer que assim desejo porque pretendo estimular a reflexão sobre a liberdade. Mas a pergunta retorna: e por que desejo estimular tal reflexão? Ao infinito, perguntas desse tipo poderiam se repetir, abrindo o imenso campo daquilo que se passa em nós e cuja causa ou porquê nos escapa. A experiência dessa ação determinante do não sabido em nós é mais corriqueira do que se pensa. Quando falamos em “amor à primeira vista”, por exemplo, pressupomos a emergência de um desejo imediato, inexplicável e independente de nós e de nossa consciência e de nosso pretenso poder de escolha.
Esse campo do não escolhido, que experimentamos com tanta frequência e sentimos tão amplo quanto o terreno do escolhido, sugere que, embora acreditemos sermos livres ao escolher isso ou aquilo, é possível que nada escolhamos senão sob o influxo de determinações que nos fazem tender para algo e não somente impõem limites a nossas escolhas como, inclusive, as estabelecem. Posto isso, não é absurdo cogitar que a convicção da posse de uma vontade livre não vá muito além de uma ilusão de nossa consciência.
Deparamos, a partir da nossa própria experiência, com duas concepções de liberdade opostas que, não por acaso, convergem com algumas linhas tradicionais da reflexão filosófica sobre a liberdade.
A partir daí, a interrogação que normalmente vem é a seguinte: qual concepção é a correta? Somos livres porque podemos, segundo nosso arbítrio, escolher isso ou aquilo ou, pelo contrário, tudo que escolhemos é determinado por causas que nos escapam? Infelizmente, ou antes, felizmente, não há resposta definitiva. Se houvesse uma conclusão final que tudo esclarecesse, possivelmente devêssemos ou concluir que somos meros autômatos pré-programados ou ingenuamente crer que podemos fazer tudo que queremos quando queremos.
Ora, não é difícil desconfiar que um equacionamento tão simplório pouco quadra à questão da liberdade. Como recomenda a sabedoria popular, nem oito nem oitenta. O fato é que ora afirmamos as nossas escolhas, ora não o conseguimos, ora ainda coincidem nossas escolhas e o desenrolar dos fatos.
Pouco convém, parece-me, decidir a questão da liberdade por extremos que insistem em fechar a noção num ponto ou noutro, ou em nossa absoluta liberdade, ou em nossa absoluta submissão às determinações exteriores. Pelo contrário, a ideia deve ser situada, para escapar dos extremos unilaterais e das abstrações. Talvez a boa questão não seja “somos livres?”, mas “podemos ser livres?”. Daí surgem questões cruciais: quando acontece de sermos ou não livres? Em que condições e com relação a quê? Em suma, interessa menos sonhar com uma definição cabal de liberdade, que sempre será questionável em face da amplitude do campo da atividade humana, do que discutir a liberdade a partir da concretude da vida humana em seus vários desdobramentos em distintos âmbitos.
Homero Santiago
Doutor em Filosofia, o professor Homero Santiago é livre-docente de História da Filosofia Moderna na Universidade de São Paulo.