Por Homero Santiago

Quem passeia pelas cidades brasileiras com o olhar atento é tomado pela sensação de que, entre nós, a urbanização se efetivou como se no intuito de promover a paulatina exclusão de parcelas socialmente desprivilegiadas da população. Não por acaso, exprimem isso tantos turistas estrangeiros, justamente aqueles que, em terra estranha, costumam exercitar a atenção a detalhes que escapam aos habituados à rotina.

Será uma exclusividade nossa? Longe disso.

Em meados do século XIX, o alemão Friedrich Engels (1820-1895) publicou A situação da classe trabalhadora na Inglaterra, oferecendo uma arguta análise das transformações ocasionadas pelo processo de industrialização em curso acelerado naquele país. Entre outros, Engels compôs um genial capítulo sobre “as grandes cidades”. O que constatou e exprimiu ali, talvez pela primeira vez, foi o nexo entre capital e desenho urbano. Segundo ele, a organização de cidades como Londres e Manchester, pontas de lança da Revolução Industrial, era quase toda resultante do embate entre pobres e ricos. Manchester, por exemplo, possuía um traçado tal que alguém podia residir nela por anos sem jamais passar por um bairro operário, sem nunca sequer cruzar na rua um trabalhador fabril que ia ou voltava de sua extenuante jornada de 10, 12 horas de trabalho. Arrematava o autor: “em lugar nenhum como em Manchester verifiquei tanta sistematicidade para manter a classe operária afastada das ruas principais, tanto cuidado para esconder delicadamente aquilo que possa ofender os olhos ou os nervos da burguesia” (Boitempo Editorial, 2008).

Ora, essa sistematicidade excludente identificada em Manchester, também a constatamos nós, em maior ou menor grau, em nossas cidades, que parecem planejadas à inglesa para servir ao objetivo básico de segregar os grupos sociais. Contanto que não haja má-fé ou uma esquisita diplopia ocular (o olho direito renega o que vê o esquerdo), é suficiente para comprová-lo um pouquinho de atenção ao traçado e à organização de cidades como São Paulo ou Rio de Janeiro, e até certas cidades interioranas, pois nesse quesito tamanho não é documento.

Para mim, todavia, a questão mais enigmática desse aspecto constatável in loco é outra, e poderia ser mais ou menos assim explicitado: esse processo de exclusão, que é histórico e não se realiza no intervalo de uma única geração, será deliberado e programado ou fruto do acaso? Quer dizer, resulta de ações pontuais e aleatórias ou possui um caráter realmente sistemático e depende de um planejamento deliberadamente excludente? Quem delibera e programa uma política desse tipo no decurso de um tempo que abarca gerações que pouca consciência têm da totalidade do processo? Uma resposta direta não é fácil, mas não é o caso de deixar para lá o problema, ou pior, jogar nas costas do azar ou de um Deus gozador e que adora brincadeiras sem graça aquilo que é obra da perversidade humana.

A interrogação se me configurou após ler o texto “Metrópole da desigualdade”, publicado no mês passado neste espaço por Camila Barreto, que usou com inteligência o livro de Raquel Rolnik, São Paulo: o planejamento da desigualdade (Fósforo Editora, 2022) para tratar da cidade homônima. Por meio de um estudo de caso de grande relevância (afinal, falamos da maior cidade brasileira), Rolnik nos oferece uma perfeita amostra do modo como nós, brasileiros, costumamos conviver ou evitar a convivência em nossas cidades — nas grandes e nas pequenas, vale reiterar — segundo o modelo excludente que Engels detectou em Manchester. As nossas políticas de ocupação do solo urbano parecem devidas a um orquestrado intento de exclusão social que se reflete nalguns “pormaiores”: a construção de conjuntos habitacionais perdidos no meio do nada, prédios recuados das ruas e sem comércio no térreo, os condomínios fechados, as calçadas malfeitas, os ônibus espúrios e com catracas, e por aí vão os execráveis e eficientes instrumentos de afastamento do outro.

As almas ingênuas até podem atribuir a situação à falta de planejamento e ao mero descaso, à incompetência administrativa e ao tão ventilado “caos” das grandes cidades. Raquel Rolnik não pensa assim, ao menos não no caso por ela analisado. Arrisco dizer que o ponto mais interessante de sua análise é insistir que os processos que produziram a cidade de São Paulo tal como a conhecemos hoje resultam de uma vontade política determinada. A história da capital paulista, diz, “tem a marca das decisões de política urbana tomadas em momentos-chave”; “não há ‘problema’ urbano ou marca urbanística em São Paulo que não esteja intimamente associado a decisões no âmbito de sua política urbana”. Estamos muito longe da visão ingênua de uma cidade caótica. Ao invés, ela é produto de um plano deliberado e de ações bem orquestradas.

Como isso aconteceu e continua acontecendo entre nós? Quem decidiu que a vida não pode ser compartilhada entre classes diversas? A quem interessa que continue assim? Nossos antepassados, um Deus malvado ou nós mesmos?


Homero Santiago
Doutor em Filosofia e professor livre-docente de História da Filosofia Moderna na Universidade de São Paulo.

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