Texto | HOMERO SANTIAGO

Se existe uma palavra que serve de senha para o nosso tempo é “narrativa”. Está em toda parte, dos debates sisudos às conversas de bar, e sem cerimônia as pessoas “constroem” as suas narrativas, contrastam a narrativa de fulano com a de sicrano, como se os fatos fossem nada. Às vezes fica a sensação de que a realidade tornou-se apenas o resultado do próprio ato de narrar.

Dada essa centralidade da noção de narrativa, não é sem interesse perguntar se existe um sentido unívoco para o verbo “narrar”. Será que diferentes culturas e diferentes épocas representam o real segundo um modo de narrar próprio? Eis um dos pontos de partida do filólogo Erich Auerbach no livro Mimesis: A representação da realidade na literatura ocidental (ed. Perspectiva), em que analisa textos literários que se estendem por três milênios.

No magistral ensaio “A cicatriz de Ulisses”, ele distingue “dois estilos” ou “dois tipos básicos” de narrativa que a seu ver estão na base de nossa civilização: o de Homero, extraído da referida cena da cicatriz (Odisseia, canto 19), e o da Torá, com foco no episódio do sacrifício do próprio filho que Deus exige de Abraão (Gênesis, 22).

Ao ler Homero, argumenta, é inevitável a sensação de que o poeta desconhece os segundos planos — imagine, leitor, um filme em que tudo aparece em primeiro plano, sem recursos usuais como desfocamento no plano intermediário ou alternância de tomadas. Segundo Auerbach, a narrativa homérica conforma um mundo em que tudo é; onde, devido à falta de planos, todas as coisas são igualmente importantes. Assim é, conclui, porque Homero só narra o presente, ou melhor, o que é narrado pelo poeta presentifica-se e preenche inteiramente a cena e a consciência dos personagens, assim como a dos leitores que os acompanham; nada fica em segundo plano, “na penumbra ou inacabado”. É um mundo “per-feito”, no sentido literal da palavra: um cosmos totalmente feito.

Por isso as personagens homéricas costumam pouco satisfazer aqueles que delas esperam, por exemplo, sentimentos íntimos e recônditos. Em Homero, o personagem é conhecido somente pelo discurso, já que não existe a ambiguidade ou o sombreamento psicológico que geralmente dependem da presença de uma consciência dramática. “Acontecem muitas coisas espantosas nas poesias homéricas, mas nunca acontecem mudamente.” Não por acaso, mais da metade dos versos da Odisseia tem a forma de discursos.

Aliás, dado chocante para nós, criados no seio de uma cultura monoteísta, até os deuses discursam. E como discursam! Falam o tempo todo, parecem em assembleia permanente, como um grupo de estudantes em greve. Os deuses homéricos adoram jogos, banquetes, e não param de tagarelar, com seus pares imortais e com os mortais. Nisso vai, destaca Auerbach, um contraste imenso com o Deus do Antigo Testamento. Este, quando decide pôr à prova Abraão, não dá suas razões; somente ordena ao pai sacrificar o filho Isaac. O trecho é revelador: “Deus testou Abraão. E disse-lhe: Abraão! — Eis aqui, respondeu ele”. Pronto, acabou.

Por que a maldade de cobrar a um pai, como signo de fé, a imolação do próprio filho? “Nada se diz”, observa o filólogo, “da causa que o movera a tentar Abraão tão terrivelmente”; o Deus judaico “não a discutira, como Zeus, com outros deuses, numa assembleia, em ordenado discurso”. Eis um ponto fundamental. Iavé ordena em discurso direto, “mas cala o seu motivo e a sua intenção”. Trata-se de um deus solitário, que não sai a parlamentar e explicar-se com seus pares, pelo bom motivo de que não os tem; não carece de convencer nem de prestar contas a ninguém; só quer a estrita obediência. A onipotência dispensa-lhe o discurso, diferentemente do que ocorre na religião grega, na qual, mesmo sendo Zeus o mais potente entre os deuses olímpicos, sua potência não é maior que a de todos os outros juntos, o que sempre está a exigir a administração de conflitos e a busca de certo consenso — não terá esse falatório algo a ver com a invenção da democracia?

Um último pormenor deveras curioso da análise de Auerbach é que talvez essa diferença entre os deuses grego e hebraico se deva aos diferentes estilos narrativos de cada povo, ou pelo menos o de Homero e o do redator da Torá. Ao que parece, a noção judaica de Deus, sugere ele, “não é somente causa, mas antes sintoma do modo judaico particular de ver e de representar”. Entendamos. Não é que houvesse concepções de deuses prontas a serem tão somente exprimidas em discurso; ao invés, é como se o próprio discurso produzisse o objeto que ele exprime; mesmo em se tratando de entidades que a maioria das pessoas está inclinada a conceber reais e independentes, como um deus. Não é impossível que só haja um deus solitário e caladão, de um lado, e deuses festeiros e tagarelas, de outro, porque são diversamente plasmados conforme a índole própria dos narradores que, pela palavra, os deram à luz e ao mundo.

Pode ser um pouco exagerado, mas não absurdo, concluir: diga-me como narras, que te direi quem és e como é o teu deus.


Homero Santiago é doutor em Filosofia e professor livre-docente de História da Filosofia Moderna da Universidade de São Paulo.

Diagramação | RONALDO CAMPOS
Foto capa de Rojem Cajan/Unsplash
Foto mídia de Aharon Luria/Unsplash

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