Por Clóvis de Barros Filho
Se uma delas fosse eu, teria que aprender a viver.
Observar e pensar sobre si.
Conhecer-se ao menos um pouco.
Tomar-se-ia por especial desde miúda.
Convencida por adultos em paparico, no berço lá longe da praia.
Se a onda fosse eu focaria desde o alvorecer nas diferenças, almejando distinção.
Seduziria sem muito pensar.
Banhistas, surfistas e areias.
Sóis e guarda-sóis.
Ondularia para encantar.
Cuidaria do porte, altura, curvas e arquear.
Adequaria a trajetória ao bem-dizer.
Afinal, sem aplauso toda pose custosa se esvazia.
E a vitória esforçada sobre o chão da morte não vê troféu.
Se a onda fosse eu compararia saliências e extensões, amputaria as extremidades menos vistosas e me reviraria em tubos para ser mais amada.
Zelaria pelos tempos e espaços, surgindo sempre no intervalo da contemplação favorável.
Proporia princípios e regras para enfraquecer as rivais.
Subverteria o ondular do universo ao apetite de glória.
Não hesitaria em mentir, difamar e acusar.
Temente a todo instante cada mínimo fracasso.
Se a onda fosse eu perceberia a praia e engataria a ré.
Lentearia o quanto pudesse.
E já no alquebrar alquebrado, lamentaria a brevidade.
Desafiaria a finitude.
Cultuaria qualquer eternidade.
Oscilando entre o antes e o depois, sem nunca coincidir.
Repensaria valores pretéritos.
Flagraria o fútil, quando já fosse tarde.
Agarraria outros sem desespero.
Debalde, sempre.
E o pior.
Desde a primeira salgada lágrima, se a onda fosse mesmo eu, não teria nunca percebido o mar.
O mar em si mesma.
O mar dos pais, irmãs e amigos.
Que também dá forma aos desafetos, inimigos e facínoras.
O mar que a integra em Deus e denuncia toda ilusão de algum eu soberano.
Famigerada ilusão.
Mas a onda, para sua sorte, não é eu.
Nem o que vos fala nem outro de nenhuma espécie.
Melhor assim.
Vive sem se dar conta, porque já nasceu ondulando.
E ao chegar na praia reflui alegremente, em ruídos e espuma branquinha, para o oceano azul do seu sagrado ser.