Por Homero Santiago
Cada época tem formas próprias de se exprimir. Muito do modo como ela se entende, transparece nas palavras e nos jeitos de falar que criam ou ressignificam a fim de manifestar anseios, opiniões, valores, sentimentos que são seus. Arrisco até a generalizar: diga-me como falas e te direi em que tempo vives!
Lançando a vista sobre as construções linguísticas atuais, uma que particularmente atrai a minha atenção é “zona de conforto”, sobretudo quando vem associada a um verbo formando essa espécie de mantra hodierno que é a inquestionável necessidade de “sair da zona de conforto”. É uma espécie de ideal salmodiado por 11 entre 10 palpiteiros da vida alheia. Posso me enganar, mas a expressão não terá mais que uma década de vida, ou pelo menos só recentemente o seu uso alastrou-se veiculando um quase mandamento de nossa época; algo mais ou menos assim: “Sai da tua zona de conforto, maximiza o teu desempenho, expande a tua capacidade produtiva. Das tripas cansadas, faze um coração novinho imune à preguiça. Se fracasso vier, é porque ainda não venceste o pecado capital do conforto”.
Brinco, mas não de forma inconsequente. Se comicidade há e o leitor começa a contrair os lábios rumo ao sorriso, ou se mais prosaicamente torce o nariz demonstrando descrédito, a culpa não é minha; aqui a realidade me ampara.
Foi na derradeira semana do ano passado, nos dias em que se costumam fazer promessas destinadas ao esquecimento (“este ano começo a malhar”, “paro de fumar” etc.), que ouvi na TV uma jovem assumindo o compromisso de, para o ano, tomar coragem de “sair da zona de conforto”. Conforme relatou, trabalhava em escritório, fazia faculdade à noite e nos finais de semana ajudava a mãe boleira. Não me recordo bem por que ela queria abandonar o tal “conforto”; assim como assim, fiquei chocado só em pensar que a moça estivesse deliberadamente aplicando a palavra àquilo que a mim parecia um calvário sem feriado nem descanso semanal.
Não creio ser da alçada de ninguém ficar palpitando sobre a vida alheia, e por isso não vou discutir as razões profundas da moça ao considerar a sua situação deveras confortável, a ponto de planejar deixá-la para trás. Só fico com a pulga atrás da orelha num ponto, e é tal que desejo compartilhar com os leitores.
Se realmente a moça acreditava viver no conforto, o mais natural não seria lutar com unhas e dentes para prolongar indefinidamente a situação? É um sintoma de época que me desafia a inteligência. Por que vias tortas e misteriosas alguém chega a conceber que os incômodos e as tribulações, a algazarra e o tumulto, a penúria, as coerções, os riscos — em suma, tudo isso que nitidamente se opõe à ideia de conforto — possam beneficiar um ser humano, o seu bem-estar? Para complicar ainda mais a vida de quem tenta entender isso: muitas das pessoas que se convencem da urgência de “sair da zona de conforto” justificam a atitude pelo desejo de alcançar coisas novas, uma nova condição de vida, um novo posto profissional que seja mais… confortável. Em poucas palavras, renega-se o conforto para abraçar o desconforto em busca de conforto. É uma triste sina paradoxal, para dizer o mínimo: é como deixar o céu por ser escuro e ir ao inferno à procura de luz (cito livremente Lupicínio Rodrigues).
Vejam só, leitores, a complexidade de uma simples expressão linguageira e quanto ela revela de nossa época e do modo como encaramos a vida. Trata-se de um ponto de vista novo com relação aos tempos antigos, os séculos e séculos durante os quais uma das questões cardinais da humanidade podia ser resumida na busca daquilo que se denominava em latim vita beata: a vida amena e tranquila, saboreada no ócio conquistado às agruras e perturbações que amiúde atazanam a existência humana; em suma, a vida feliz. Pois então, se valia a pena viver, pensar, lutar, era para conquistar essa vida boa e, tanto quanto possível, aproximar-nos neste mundo da condição dos deuses — não por acaso “beatitude”, afora o sentido religioso comum hoje, foi e ainda é sinônimo de felicidade.
Eis um enigma que me sinto incapaz de resolver. Como chegamos a abominar o conforto e a felicidade? Em vez de gritar com força: “Vou-me embora para Pasárgada” (saudemos Manuel Bandeira), covardemente, servilmente desejar “sair da zona de conforto”. É como se as pessoas, hoje, sem muita cerimônia se acreditassem desde sempre postas nalguma “zona de conforto”, já bem situadas naquele posto a que gerações e gerações humanas aspiraram como o ápice do itinerário de uma vida humana. Pior, a essa petulância assoma-se a sandice: de posse do “conforto”, correr a abandoná-lo, para abraçar o desconforto.
Ó linguagem, ó tempos, ó costumes! Humildemente, confesso a minha ignorância. E essa desinteligência, para mim, não passa de uma zona de desconforto, da qual quis dar notícia aos leitores. A estes, só posso jurar que, no dia em que ficar convencido de que atingi algo que se aproxime de uma “zona de conforto”, ali me aninho, armo morada e de lá nunca mais saio.
Homero Santiago
Doutor em Filosofia e professor livre-docente de História da Filosofia Moderna na Universidade de São Paulo.