Por Homero Santiago
Tem gente que gosta de silêncio, tem quem busca o agito; uns apreciam a tranquilidade do interior profundo, outros necessitam do estímulo das capitais. O meio exerce uma influência importante sobre o nosso humor, nossos afetos e expectativas. Com relação ao pensar, não deve ser diferente. Seria incrível que essa faculdade tão caracteristicamente humana que denominamos “pensamento” estivesse desvencilhada do lugar e do ambiente em que ela se dá.
Tomando o assunto por esse ângulo, basta um breve percurso pela história da filosofia para descobrir uma tão insistente quanto curiosa conexão entre a vida citadina e o pensamento inovador. A democracia, bem como a meditação sobre essa forma inédita de organizar a vida social, floresceram junto com as cidades-Estados gregas. A modernidade foi despontando conforme as pessoas começaram a abandonar a vida restrita aos feudos e buscaram refúgio nas cidades. Ao longo dos séculos, as grandes metrópoles desempenharam o papel de catalisadores de movimentos políticos e artísticos. Portanto, está longe do absurdo a associação sugerida no início. Tomemos por exemplos três dos pensadores mais revolucionários de todos os tempos: Nicolau Maquiavel (1469-1527), Bento de Espinosa (1632-1677) e Karl Marx (1818-1883).
Maquiavel é cidadão de Florença, o centro da renovação da literatura, da pintura e da filosofia no período do Renascimento italiano; foi ele possivelmente o primeiro, desde a antiguidade greco-latina, a elaborar uma meditação sobre a política e a natureza humana imune às cadeias teológicas. A Amsterdã natal de Espinosa é o centro do comércio mundial e, ao contrário do resto do continente europeu, submetido a guerras e perseguições religiosas, pratica a tolerância, acolhe professantes do judaísmo em seu espaço urbano (o filósofo, aliás, nasce numa comunidade de judeus ibéricos) e é um dos principais centros editoriais do mundo, publicando obras de Galileu, Descartes e outros. Marx, por fim, ainda que nascido numa pequena cidade alemã, passa a maior parte da vida numa Londres populosa e paupérrima que é ponta de lança da Revolução Industrial e simultaneamente conhece os primeiros passos das lutas organizadas por operários contra o capitalismo em consolidação.
É bem difícil acreditar que seja mera coincidência. Três figuras fundamentais do pensamento e, em particular, da reflexão sobre a emancipação humana, filósofos que apontaram cada um à sua maneira novas direções para a posteridade, estiveram todos umbilicalmente ligados a uma metrópole de destaque, aquela que à época melhor prefigurava os passos do desenvolvimento socioeconômico e cultural do mundo. Não vem ao caso conceber uma determinação direta e bruta do meio sobre o pensamento. Fosse assim, por exemplo, todos que viveram em Londres no século XIX haveriam de pensar como Marx, tal como todo judeu nascido em Amsterdã tornar-se-ia automaticamente Espinosa. Feita essa ressalva e tomando o devido cuidado, parece razoável conceber que um pensador seja tanto mais capaz de fazer-se grande quando consegue captar e deixar-se inspirar pelas fagulhas que garimpa, por assim dizer, em seu próprio quintal.
E o que pode mais aguçar o pensamento, instilando-lhe radicalidade, do que uma vida metropolitana? Longe da lúgubre existência in natura e da acabrunhante uniformidade, a metrópole é sinônimo de diferenças de culturas, línguas, comidas, cores, opiniões; uma multiplicidade que incessantemente questiona a ideia de sociedade una e imutável, pondo em xeque as ideias tradicionais e sinalizando o novo. Até mesmo os conflitos e as tensões inevitáveis quando um número enorme de pessoas têm de dividir o mesmo espaço, desse ponto de vista, são menos um defeito do que uma vantagem: o espaço dividido é também um espaço compartilhado, lugar de convivência onde as coisas podem acontecer para todos e por obra de todos. Essa diversidade sintetiza a própria possibilidade da vida em comum; ela civiliza os conflitos e, assim, dá forma a um campo em que o pensamento como que espontaneamente se exercita sobre as alternativas ao presente.
Forçando um pouco os termos de comparação (e espero que sem ser abusivo), vez ou outra me ocorre perguntar por que frequentemente o culto à natureza, à vida provinciana, ao marasmo dos espaços desabitados vem acoplado ao conservadorismo e à ojeriza ao diferente. Pensando no cinema (só para sair um pouco da filosofia), seria de interesse observar o contraste entre os filmes da alemã aderente ao nazismo Leni Riefenstahl (filmes de montanhas, culto ao aspecto físico e à natureza) e os do neorrealismo italiano (Vittorio de Sicca, Roberto Rossellini, Luchino Visconti), que são filmes de cidade que subversivamente propõem, no plano visual, cenas citadinas que se transmutam em irresistíveis promessas de liberdade.
Em suma, embora não dê para afirmar que será sempre assim, temos de reconhecer que, até hoje, as metrópoles sempre funcionaram como estimulantes de nosso pensamento e guardiãs de nossas expectativas de vida melhor.
Homero Santiago
Doutor em Filosofia e professor livre-docente de História da Filosofia Moderna na Universidade de São Paulo.