Por Homero Santiago

Morreu no último agosto Alain Delon. Não me considero aficionado por cinema e muito menos por grandes estrelas. Quem segue aqui meus textos deve mais ou menos intuir a minha predileção pela escrita. Sem desmerecer as variadas formas de expressão disponíveis ao ser humano, gosto de mangar sugerindo que uma palavra vale mil imagens. Ainda assim, ao saber da morte de Alain Delon, foi-me inevitável a sensação de que algo importante ia embora. Em minha cabeça, pelo menos, o seu nome não se descola de um momento sublime do cinema, marcado por atores e cineastas, por obras-primas incomparáveis, especialmente duas do diretor Lucchino Visconti em que atua o ator francês: Rocco e seus irmãos (1960) e O leopardo (1963), ou O Gattopardo, como é hábito dizer aportuguesando o original italiano.

Neste último, em particular, Delon contracena com Claudia Cardinale, elevando a beleza visual a um patamar raro de ver e muito menos de rever. Um gozo aos olhos! Do mesmo filme, de uma de suas cenas iniciais, proveio a lembrança que me arrebatou assim que li sobre o desaparecimento do ator. No meu íntimo, figurei-o enunciar algumas das mais célebres palavras do romance homônimo que inspirou a película de Visconti e cuja autoria é de Giuseppe Tomasi di Lampedusa (1896-1957).

Até meados do século XIX, a Itália não existia como país, sendo apenas a designação de uma península recortada por um amontoado de reinos, repúblicas, principados e estados papais; embora culturalmente avizinhados, os “italianos” sequer falavam uma mesma língua, a qual, aliás, não existia oficialmente. É só por essa época que toma corpo um movimento de unificação que ganha o nome de “Risorgimento” e cuja liderança cabe a Giuseppe Garibaldi, um sardo que vivera por anos no Brasil. Em 1860, tropas garibaldinas desembarcam na Sicília e atacam as forças do Reino das Duas Sicílias, a fim de obrigá-lo a unir-se à Itália em construção. O jovem Tancredi Falconeri (interpretado por Delon), pertencente a um aristocratíssimo clã local, discute a situação com o seu tio, o príncipe Fabrizio Corber Falconeri. O que fazer? Eis o dilema.

Intempestivamente, Tancredi sugere unir-se aos invasores. O tio se apavora, prevê o pior para a família e suas propriedades seculares, antevê o sobrinho estripado por plebeus vingativos. É loucura, conclui, um Falconeri deve lutar pelo rei. “Pelo Rei, está certo. Mas que Rei?”, pergunta provocativamente Tancredi. Ele se faz sério e então lança a famosíssima explicação por trás de sua ideia aparentemente amalucada: “Se não estivermos presentes, eles aprontam a república. Se queremos que tudo continue como está, é preciso que tudo mude. Fui claro?” (uso a tradução brasileira do romance de Lampedusa publicada pela BestBolso).

A proposta aí expressa, que ainda retorna noutros momentos do romance, bem como do filme, granjeou tal sucesso que deu origem a um conceito político: o gattopardismo.

É provável que a maioria das pessoas torça o nariz para as palavras de Tancredi, cobrindo de impropérios o personagem: falso, chauvinista, oportunista, traidor. Seja. Mas, gostemos ou não, é inegável que Lampedusa encontrou a perfeita expressão literária, e Visconti a conformou maravilhosamente ao cinema, de uma verdade profunda da vida política e social, não aquela com que apenas sonhamos, mas a existente. “Gattopardismo” tornou-se um termo da politologia porque, indubitavelmente, exprime algo real: uma estratégia conservadora de manutenção das estruturas de poder e privilégios graças à bem calculada repristinação dessas mesmas estruturas, as quais devem vir à baila com um ar de novidade que camufla a tradição, tal como um idoso que chega ao baile pantominando juventude.

É um segredo dos domínios políticos que perduram por tempos, às vezes séculos: sabem o momento de trocar seis por meia dúzia. Matematicamente irrelevante, em política isso é decisivo. A máquina do poder se azeita, as peças funcionam melhor, as aparências se renovam e… tudo continua igual, exatamente porque tudo está bem diferente. O gattopardismo é expressão de um mundo de acomodações. Aliás, é assim que dom Fabrizio descreve a Sicília: ali tudo se acomoda, sem sobressaltos; os sicilianos são pessoas pacatas e ordeiras. E daí a sua aposta: não vão nos trucidar, apesar dos séculos de submissão deles e dominação nossa. Será absurdo o ponto de vista do tio? Não. Assim como não foi o de Tancredi ao aderir às tropas garibaldinas e consorciá-las aos interesses da aristocracia local.

Embora Garibaldi seja cultuado como o arquiteto da unificação italiana, ele não conseguiu impor o seu ideal republicano ao novo país, que se tornou um reino sob o comando da casa de Savoia (aquela cuja simbólica cruz ainda hoje adorna o uniforme do Palmeiras). As ideias de transformações estruturais, reforma agrária, abolição da nobreza, causas por que lutaram e morreram tantos garibaldinos, foram apenas sonho de uma escaldante noite de verão siciliano. Em certo sentido, Alain Delon, digo, Tancredi Falconeri tinha razão.

 


Homero Santiago é doutor em Filosofia e professor livre-docente de História da Filosofia Moderna da Universidade de São Paulo.

Foto (Alain Delon): Anne Hidalgo — Reprodução/Instagram
Foto capa: Claudia Cardinale — Reprodução/Instagram
Foto Sicília de Yoav Aziz/Unsplash
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