Por Homero Santiago
Recentemente segui uma palestra de Cesare Pietroiusti, um artista romano de quem nunca ouvira falar. Entre tantas coisas interessantes, uma me surpreendeu particularmente e gostaria de compartilhá-la, pois dialoga com certos aspectos salientes de nossa presente vida sociopolítica e cultural.
Pietroiusti contou que certa vez teve de fazer uma longa viagem de carro entre Roma e Turim; sozinho, tinha medo de dormir ao volante. Quando o sono apertou, resolveu cantarolar para despertar o corpo. Começou com o que lhe vinha à cabeça; mas eram coisas leves que não surtiram efeito. Sentindo necessidade de algo “mais forte”, partiu para cantos revolucionários, como o esquerdista Bandiera rossa, dando a ênfase que a música pede. Funcionou bem por um tempo, mas logo o sono voltou a assediá-lo. Engatou outros hinos, aumentou o tom da voz, mexeu os braços, até que… como que do nada, começou a cantar uma famosa canção fascista: “vincere! vincere! vinceremo / in cielo, in terra, in mare” (“vencer! vencer! venceremos no céu, na terra, no mar”). O hino o exaltou. Passou a dirigir — gesticulava ao contar — pressionando o volante, cada vez mais excitado e revigorado. Assim o artista disse ter chegado bem ao seu destino, cantando coisas fascistas. Ao sair do carro, era como se o corpo quisesse continuar, músculos em pelo: “vencer, vencer, venceremos”. Sentia-se pronto para tudo.
Pietroiusti é formado em medicina e se especializou em psiquiatria. Aprecia a ideia de “arte relacional”, ou seja, uma arte que renega as fronteiras rígidas entre os sentidos, o intelecto e as várias possibilidades expressivas de uma mesma coisa. Por exemplo, rigorosamente falando, o verde é uma cor, mas também exprime um cheiro (“cheiro-verde”), assim como um sentimento diante do mundo (a esperança costuma ser dita verde) ou uma posição política (no campo político, fala-se de “verdes”); igualmente, a arte relacional afronta a antiga distinção, às vezes até oposição, entre corpo e pensamento. Ora, no carro, o artista serviu-se de um artifício do pensamento para fortificar o corpo (cantar); o corpo, no entanto, quis fortificar-se com outra coisa que não o prescrito, e aparentemente de moto-próprio, trouxe à baila algo diverso (hinos fascistas) do que o próprio pensamento esperava.
Quem, no final das contas, agiu? É difícil responder, nem dá para saber se tal pergunta faz sentido, já que implica uma separação que o artista recusa. E daí mesmo ele ter ficado encasquetado. Que o corpo reencontre seu vigor fora do prescrito pelo pensamento, nenhum problema. Mas que o faça mediante canções fascistas! Como entender isso? — perguntou-se Pietroiusti. Que elemento secreto teria feito que ele, que se considera um antifascista, fosse tão fortemente mobilizado por cantos fascistas? Do problema surgiu a interrogação: o que, na canção, tanto mobilizara o seu corpo? Em suas palavras: “o que tenho de fascista dentro de mim?”. É como se o seu corpo pensasse, a despeito de suas opiniões, às dele, Cesare Pietroiusti. Porém, levando a sério a ideia de “relação”, não dava para imputar ao corpo sozinho o ocorrido. O indivíduo em sua inteireza fizera aquilo.
Convencido de que a arte tem por função colocar o dedo em nossas piores feridas e pressionar o que nos é mais difícil de acatar e entender, Pietroiusti bolou uma intervenção. Trancou-se num cômodo com ampla janela aberta à rua e se impôs o desafio: já que o meu corpo se revigora com canções fascistas, cantarei a mesma coisa até o limite do próprio corpo; levar o corpo à exaustão pela repetição daquilo mesmo que o fortalece (parece claro certo desejo de expurgação). E assim ele cantou por seis horas e meia os mesmos versos de duas canções da época fascista; ao triunfal “vencer, venceremos…”, combinou “Giovinezza, giovinneza / primavera di bellezza” (“juventude, juventude, primavera de beleza”), canção que celebra o “fascismo redentor”.
No curso da intervenção, apesar da indiferença de muitos, após a inicial surpresa, alguns até começaram a acompanhar o artista; sobretudo, um grupo de jovens (torcedores de futebol?) passou a interagir com ele de maneira cada vez mais enfática, como se vê no registro da ação, que ganhou o nome de Pensiero unico (“Pensamento único”). Era como se o sentimento fascista fosse despertado, na mente de quem ouvia a música na rua, a partir de um impulso corporal, inconscientemente, mais ou menos como ocorrera na solitária viagem de Pietroiusti. Seriam todas aquelas pessoas fascistas? De jeito nenhum. Não o eram necessariamente, não mais do que o próprio artista quando, entre Roma e Turim, sentiu vir de dentro de si algo fascista sob a forma de uma canção. Então todos teremos dentro de nós, por mais que o abominemos, um fascista escondido? Talvez, e daí a pergunta final de Cesare Pietroiusti: o que significará isso e quais as suas implicações?
A arte é capaz de cutucar nossas feridas. Feito isso, é preciso pensar. Nos dois sentidos que o verbo pode assumir.
Homero Santiago
Doutor em Filosofia e professor livre-docente de História da Filosofia Moderna na Universidade de São Paulo.