Por Homero Santiago

Numa canção, o saudoso Raul Seixas contou um sonho maluco: certo dia ninguém saiu de casa para trabalhar nem para ir à escola, os ladrões não foram roubar, os soldados não combateram, e por aí vai. Foi “o dia em que a terra parou”, cantava o refrão.

Durante os meses mais duros da pandemia e quando o isolamento social e inúmeras restrições se impuseram a boa parte da população mundial, a música ganhou algo de profética. Ruas desertas, bares e cinemas fechados, atividades a distância, como se o sonho de Raul estivesse prestes a virar um pesadelo de verdade. À maneira de reação a esse recolhimento forçado do cotidiano “real”, um novo tipo de vida se acelerou e se impôs: a virtual. Lá se encontravam os produtos que queríamos comprar; leituras, estudos e tarefas, aplicativos aos montes; para muitos, havia ali a única alternativa de convivência com amigos e parentes, mesmo que uma sociabilidade mediada pelas telas e que se dá, em boa medida, nos ambientes impalpáveis das redes sociais.

Talvez por isso tenha sido tão chocante o recente apagão de parte importante desse mundo. Com a nossa a imersão no universo internético, o bloqueio do mundo virtual, mesmo que por poucas horas, foi um susto imenso.

Até a fértil imaginação de Raul Seixas teria dificuldade em conceber que na segunda-feira, 4 de outubro de 2021 algumas das principais redes sociais do mundo — Facebook, Instagram, WhatsApp — subitamente ficariam fora do ar. Se tivessem vontade própria, como às vezes parecem ter, diríamos que chegara o momento de cobrarem um merecido descanso pela utilização intensiva dos últimos meses. Para se ter uma ideia do estrago, só no caso do WhatsApp, 3,5 bilhões de pessoas, perto de metade da humanidade, ficou sem poder usar o serviço por um período entre seis e sete horas; além dos contratempos corriqueiros, foi enorme o prejuízo de comerciantes, sobretudo os pequenos, que se servem da plataforma para vendas.

Algumas horas de pane, obviamente, não foram o bastante para provocar uma calamidade humana como a pandemia. Ainda assim, o acontecimento é significativo e nos desperta para a nossa peculiar relação com a tecnologia.

O ser humano sempre dependeu dos instrumentos e máquinas que inventou para ajudá-lo em certas tarefas ou mesmo desempenhá-las em seu lugar. Isso vale para um computador tanto quanto para uma reles tesoura. Ocorre que, com a utilização em larga escala e por um período prolongado, máquinas e instrumentos tornam-se como que apêndices ou próteses de nosso ser e, na ausência deles, parece que já não conseguimos mais realizar tarefas banais — e isso para nem falar em compromissos importantes (este texto, por exemplo, teria dificuldade extra para chegar às mãos do editor da Inspire-C).

Daí não ter faltado gente a ventilar e lastimar a nossa completa submissão ao mundo virtual e às máquinas informáticas. Será verdade? Acredito ser um pouco exagerado. A ideia de deixar de encontrar uma pessoa e conversar com ela a distância não surgiu com a internet; pode ser retrocedida pelo menos à invenção do telefone. Da mesma forma, a tal “perda da vida real” nem sempre é ruim: quem não fica contente em resolver questões bancárias num aplicativo sem precisar ir até a agência e enfrentar uma longa fila? Hoje dependemos dos computadores e da internet, reiteremos, como o ser humano sempre dependeu de suas invenções. A diferença talvez esteja menos na relação que no grau dessa dependência, pois uma parte considerável e provavelmente a mais importante do mundo é hoje regida pelos computadores e acontece no mundo virtual. Convém sublinhar a ideia de “comando”: quando utilizamos uma tesoura para banalmente cortar um papel, temos convicção de que estamos no comando, mas nem sempre o mesmo acontece quando utilizamos um computador; de vez em quando, a sensação de que a máquina é que nos comanda é tão forte que nos perguntamos se não chegará o dia em que teremos certeza de que elas, sim, é que nos usam, e não o contrário (essa tribulada relação humana com a tecnologia está no cerne do belíssimo filme 2001: uma odisseia no espaço, de Stanley Kubrick).

Vem daí, acredito, a faceta simbólica mais importante do apagão das redes sociais do último 4 de outubro. Deixando de lado os exageros catastrofistas, o aspecto terrível do acontecimento está em escancarar a falibilidade da tecnologia, e, portanto, nos recordar de algo geralmente esquecido: as máquinas, por mais sofisticadas que sejam, também falham. Como nós, seres humanos, aliás. E o que acontece quando depositamos parte crucial de nossa vida nelas? Eis o xis da questão. Não há resposta simples.

É possível que a perplexidade diante do apagão tenha provindo menos do que as máquinas têm de diferente de nós e mais daquilo em que se assemelham a nós: não corresponder às expectativas e falhar em nossos atos. Na música de Raul, os próprios seres humanos decidiram parar; dessa vez, as invenções humanas se mostraram capazes de parar o ser humano. Paradoxalmente, justo quando não funcionam conforme o esperado, elas acabam funcionando como um espelho de nossas incontornáveis limitações. Mas como gênio é gênio, e sempre aponta para muita coisa, outra canção de nosso grande roqueiro já previa o impasse, e com seus versos podemos terminar:

‘Tá rebocado meu compadre
Como os donos do mundo piraram
Eles já são carrascos e vítimas
Do próprio mecanismo que criaram’


Homero Santiago
Livre-docente pela Universidade de São Paulo, onde é professor de História da Filosofia Moderna. Possui graduação, mestrado e doutorado em Filosofia pela Universidade de São Paulo.

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