Por Homero Santiago

Espantosamente, ainda há quem ponha em dúvida a eficácia das vacinas anticovid. Como se fechassem os olhos para simplíssimo dado de que a curva de mortes pela doença, conforme a população começou a ser vacinada, foi claramente diminuindo, até o ponto em que, hoje, a enorme maioria dos óbitos recai sobre pessoas não vacinadas, quer recalcitrantes, quer crianças.

Mais incrível ainda — melhor: incredibilíssimo! —– é que em final de julho o presidente da República discursou na sede do Conselho Federal de Medicina (CFM) pondo sob suspeita as vacinas e… foi aplaudido. É difícil saber os motivos das palmas (concordância? cortesia? outra coisa?) e não cabe discutir as razões do mandatário. Cada louco tem sua mania e convém não suprimir esse direito. A coisa se torna mais complicada, sim, quando gente credenciada por uma corporação legalmente reconhecida, como o CFM, aplaude palavras que contrariam os critérios comezinhos de seu campo de saber — mal comparando, como se uma guilda de pedreiros desacreditasse a receita básica da massa de cimento. Aí, a porca torce o rabo. Como titulares de diplomas de medicina, em tese uma disciplina científica, aplaudem uma opinião (o termo exato é este) que agride tanto as comprovações da ciência quanto os indícios do bom senso? Seriam nossos médicos tão malformados?

Ao longo da pandemia, esse questionamento veio à tona mais de uma vez, quando certos doutores, mesmo sem demonstração científica dos benefícios da cloroquina e da ivermectina em pacientes de Covid-19, continuaram receitando-as, inclusive no bojo do tal “tratamento precoce”. Para piorar, havia o alerta emitido pela Organização Mundial da Saúde (OMS) de que o uso indiscriminado dessas substâncias era prejudicial à saúde, podendo acarretar de arritmia cardíaca a hepatite medicamentosa. Ora, uma atitude temerária desse tipo talvez fosse desculpável da parte de pessoas desprovidas de formação específica. Como, porém, entender que assim se comportavam pessoas presumidamente capazes de compreender e tomar por guia a informação científica? Dá para compreender que ainda hoje médicos assim se comportem, como visto no CFM?

Quanto à qualidade da formação médica no Brasil, fica a questão aos que efetivamente conhecem a situação. Não sendo o meu caso, sugiro deslocar o foco para a própria interrogação e um pressuposto seu que poderia ser assim explicitado: se um médico age erroneamente (segundo os critérios da ciência e do próprio CFM) ao receitar uma droga ineficaz e perigosa ao paciente ou então renegar uma vacina eficaz, a causa está em desconhecer a verdade sobre tais substâncias e ignorar que a sua profissão deve orientar-se por parâmetros científicos, sob o risco de cair no curandeirismo. Logo, o médico erra por ignorância; e se ignora, é porque foi malformado.

Eis que a filosofia vem à baila. Desponta aí uma tradição que remonta a Sócrates e Platão. O erro e a má ação dependeriam fundamentalmente da ignorância; seria inimaginável que alguém, conhecendo o verdadeiro, escolhesse voluntariamente o falso. Um ponto de vista ressoa inclusive nas célebres palavras que, no Novo Testamento, saem da boca de Jesus crucificado: “Pai, perdoa-lhes: não sabem o que fazem”.

Acontece que a coisa está longe de ser tão simples. Muitas são as perspectivas diferentes que complicam o assunto. Segundo algumas, é como se pudéssemos dizer, tergiversando as palavras bíblicas: eles sabem o que fazem e, por isso mesmo, fazem e querem fazer o que fazem.

Muitas vezes, entre o saber e a ação intercala-se um terceiro elemento. Afeto, desejo, preconceito, interesse, seja o que for; um querer que leva a fazer ou deixar de fazer algo. A intervenção desse fator desarma o automatismo da relação entre o saber e a ação (o pressuposto socrático-platônico); já não há apenas uma via reta: sei e imediatamente faço. Entre um e outro, insinua-se (cantaria o Caetano que aniversariou há pouco) a “bruta flor do querer”. É o que explica que às vezes, mesmo sabendo o que é melhor, escolhe-se outro caminho. Absurdo? Não. É trivialmente humano. Imaginemos uma possibilidade: alguém sabe que não há provas cabais da eficácia de certo remédio para uma doença; dia após dia, martelam em sua cabeça o contrário (a indústria farmacêutica ou uma autoridade, por exemplo); a sugestão eleva-se e vai predominando. Isso não muda o saber que a pessoa possui, mas debilita a sua convicção e, simultaneamente, reorienta o seu querer; até o ponto em que este consiga dobrar aquele.

São inúmeros os mecanismos que, além do conhecimento, atuam sobre nossa vontade: propaganda e pressões, punições e retribuições, medos e dúvidas. Seria um erro descabido ignorar o papel desses fatores sobre o nosso querer, isto é, sobre a ação humana. Por isso, a meu ver, é uma ideia vã conceber que uma formação universitária, por melhor que seja, consiga contra isso nos imunizar. Em conclusão, talvez nossos médicos não sejam malformados; simplesmente continuem sendo… seres humanos.


Homero Santiago
Doutor em Filosofia, o professor Homero Santiago é livre-docente de História da Filosofia Moderna na Universidade de São Paulo.

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