Por Homero Santiago
Tudo pode ser objeto de riso ou convém guardar limites?
A questão deve nascido junto com a primeira piada, e sempre retorna. No Natal de 2019 um grupo fez uma encenação bem-humorada da última ceia de Cristo (apresentada na Netflix) e foi um escarcéu. Igualmente, não faltou quem se indignasse com as piadas e memes a satirizar, com maior ou menor sutileza, a pandemia de Covid-19. Há pouco, o problema reapareceu com o episódio de uma professora de Brasília que, num dia de ameaças a escolas, postou numa rede social uma foto sua: “look de hoje: especial massacre”; e ainda acrescentou: “se eu morrer hoje, estarei belíssima, pelo menos”. Obviamente, nas atuais circunstâncias, teve quem não achou nenhuma graça; o caso chegou inclusive à polícia, que curiosamente convocou a professora para dar “explicações” (explicar uma piada?!). Como não havia indício de que a moça fosse “terrorista” ou coisa do tipo, só se deduz que a polícia pretendeu (inocuamente) “calibrar” o nível do humor na internet.
Eis a questão eterna: é razoável brincar com “coisas sérias”?
Não quero entrar na discussão do que possa significar “seriedade”. Para facilitar, simplesmente acatemos que existam coisas “sérias”. Ocorre que, ao mesmo tempo que muitos insistem que com coisa séria não se brinca, outros pensam que são justamente os assuntos mais sérios que garantem e realmente merecem as melhores risadas. Às vezes, inclusive, a única maneira de lidar com certas situações sérias, e dolorosamente sérias, é dessa forma. Você já deve ter ouvido dizer que só o humor destrói. Ora, não é absurdo acrescentar que há ocasiões em que só o humor acalenta e nos permite lidar com certas mazelas da vida, caçoando dos males que nos afligem, até da “indesejada das gentes”. O tradicionalíssimo gênero piada de velório traz um pouco disso, pois recordar com ironia detalhes da vida de um defunto ajuda a encarar a morte, como que dando um prolongamento afetivo à existência que fisicamente se extinguiu.
Todavia, há um exemplo bem mais significativo que, a meu ver, demonstra cabalmente a pertinência do fazer graça com coisas sérias: sob regimes autoritários, é comum a proliferação de piadas capazes de sintetizar a revolta e o sofrimento dos que as contam, as ouvem e delas riem. Como se ousassem dizer, com a devida cautela: sabemos o que está acontecendo; temos medo, mas não tanto que nos faça calar. Não faltariam exemplos provenientes da Alemanha nazista ou da União Soviética stalinista. Creio, porém, que mais vale um caso nosso.
Entre 1964 e 1968, o jornalista Sérgio Porto, sob o pseudônimo Stanislaw Ponte Preta, recolheu notícias e causos que, sarcasticamente, propunham um retrato do Brasil nos primeiros anos da ditadura militar. O conjunto em três volumes recebeu o nada singelo título de Febeapá – Festival de besteira que assola o país. Ainda hoje, graças à verve cômica do autor, o livro faz o leitor sentir os efeitos do autoritarismo sobre uma nação, especialmente a ação dos tiranetes que, ridiculamente, caruncham a vida social. Por exemplo, quando lemos que, em 1967-1968, policiais chegaram num teatro para prender o autor da “subversiva” Electra, tragédia do grego Sófocles, morto no século V a.C., é impossível não rir perante o ridículo do autoritarismo e de seus agentes. Percebemos, então, como um misto de inteligência e escracho consegue, até hoje, nos contar e assim denunciar, por meio de piadas, o horror cotidiano da vida sob uma ditadura. De lá para cá, a potência da piada não mudou. Diria até que foi potencializada pelo surgimento de novos meios e formatos (o meme é um exemplo maior) que ampliam a tiração de sarro e fazem rir à beça tomando por mote o assunto do momento, seja qual for.
Ora, as tantas piadas sobre eventos trágicos que ouvimos todo santo dia não exprimem isso, ou seja, a capacidade de consideração abrangente de situações que estão longe de ser simples? Ademais, essas piadas não se mostram capazes de, em meio a incertezas e sofrimentos impostos pelas adversidades, humanamente oferecer uma pequena redenção temporária mediante o riso, seja leve ou desatado? Penso que sim. Uma boa piada e as risadas que ela ocasiona têm o dom de, como se diz, lavar a nossa alma, ainda que só por um instante.
Daí a dúvida: não teria procurado algo assim aquela professora de Brasília que precisou, num dia tenebroso, encher-se de coragem para sair de casa e trabalhar sob ameaças? Não acho absurdo que ela tenha conseguido achar, exatamente por meio do humor, o alívio necessário para ir trabalhar e desempenhar o seu papel.
Claro que nem pandemia nem ataques a escolas são piada. Entretanto — eis o ponto fundamental —, podem tornar-se objeto de piada graças a nossa imaginação e segundo nossas necessidades. Ainda que nem sempre rir seja o melhor remédio, às vezes é o único remédio à mão. A leveza que decorre de um riso, desse gesto exclusivamente humano, não pode ser coisa ruim; e mesmo sem trazer solução para nada, pode valer só pelo alívio espiritual que nos traz.
Homero Santiago
Doutor em Filosofia e professor livre-docente de História da Filosofia Moderna na Universidade de São Paulo.