Por Homero Santiago

Que não seja imortal, posto que é chama
Mas que seja infinito enquanto dure.

Uma tradicional e difusa opinião sobre o amor humano fulmina que, vivenciado sem rédeas, pode decair no desejo libidinoso insaciável que nos reduz à animalidade e ao instinto que não faz senão buscar a repetição do mesmo, isto é, a satisfação. O ato sexual seria a perfeita exemplificação disso: o enlace corporal segue um crescendo de intensidade que culmina no gozo; ao fastígio do prazer, segue a baixa; toma-nos então o lascivo esforço de, a qualquer custo, recomeçar o processo; só para depois, alcançado mais uma vez o gozo, correr-se atrás de um novo recomeço, e assim indefinidamente. Eis, para a tradição, o modelo mesmo da vida viciosa, aquela que de humana definha no automatismo animal.

Desde a antiguidade, muitos consideraram que essa movimentação louca exprimiria somente a tentativa de contornar a nossa finitude, por meio de um gozo que viesse preencher o oco que nos constitui; ora, precisamente por sermos finitos, nosso ser sempre carecia de algo — propalar e buscar desenfreadamente a suposta “plenitude” do amor seria só uma forma ingênua (“pecaminosa”, diriam alguns) de sonhar com o preenchimento de nossa carência constitutiva. Os censores, os moralistas, os religiosos carolas, as pessoas tristes em geral, sempre se locupletaram com essa santimônia.

É contra esse pano de fundo que podemos identificar um dos aspectos mais admiráveis da poesia de Catulo (séc. I a.C.). Há poucos meses foi reeditada a sua poesia completa, em notável trabalho de João Angelo Oliva Neto, pela Edusp, e parece-me oportuníssimo recomendá-la como uma excelente oportunidade de travar conhecimento com esse poeta genial, revolucionário em vários aspectos. Sou suspeito, pois é um de meus autores preferidos (daqueles que a gente tem a impressão de passar a vida relendo), ainda assim fica a dica, com dezembro batendo à porta, de um estupendo presente de Natal.

Reatemos o fio da meada. Um traço bem vincado da personalidade poética de Catulo é sua firmeza na oposição aos que assumiam uma posição como essa que há pouco tentei circunscrever, os por ele denominados “severos”. Entre tantos expedientes e dardos lançados contra o carolismo severo, aquele que poeticamente mais admiro e me parece conceitualmente exitoso é uma espécie de cavalo de Tróia. Adentrando a cidadela moralista, o poeta revira e ressignifica a ideia de mesma repetição, descobrindo uma maneira de deslocá-la, do automatismo besta, para instrumento de constituição uma história amorosa em que prima a exigência da satisfação do desejo reiterada, em intervalos temporais cada vez mais amiudados. No plano artístico, a partir daí se produzem formidáveis efeitos poéticos, como neste que é um dos mais conhecidos poemas de catulianos:

Vamos viver, Lésbia, vamos amar,
e os rumores dos velhos mais severos,
todos!, não valham mais que nada. Sóis
podem morrer e renascer, mas nós
quando se põe a nossa breve luz,
uma só noite, eterna, dormiremos.
Mil beijos dá e então mais cem, me dá
depois mais mil, mais outros cem depois,
depois mais outros mil e após mais cem,
depois ao completar muitos milhares,
vamos perder a conta, confundir,
porque malvado algum possa invejar,
se de muitos souber, de tantos beijos.

Nesses versos, descobrimos algo incrível: os pretensos ocos de nosso ser, a fugacidade do objeto de prazer e a efemeridade da satisfação de nosso desejo, podem colmatar-se por meio da repetição de beijos que, a cada vez, reiteram a presença do objeto de amor e da satisfação que ele proporciona. Os beijos se repetem e se repetem e se repetem… até que, no limite, o desejo pela amada Lésbia reveste-se de uma continuidade sem falha. Cem, mil beijos, até se perder a conta, até atingir-se a infinitude do inumerável, como neste outro poema:

Perguntas quantos beijos teus a mim
me bastam, Lésbia, e quantos são demais.
Quantos forem os grãos de areia Líbica
(…)
quantas estrelas, quando cala a noite,
aos amores dos homens testemunham
(…)
Assim os curiosos não consigam
contar nem as más-línguas pôr quebranto.

O lance segredo do poeta está em repetir o gozo pontual ao infinito; o ponto, repetido em velocidade infinita, infinitiza-se. Justamente, os beijos serão suficientes, explica-nos, quando perdermos a conta, isto é, quando indicarem o infinito numérico. Assim, o vazio amoroso, tão diabolizado pelos “severos”, é remediado pela da repetição do prazer de cada beijo, a qual possibilita o não distanciamento entre nós e a fonte do gozo. Este perdura, e assim o próprio amor se torna infinito na duração, como um dia sonho Vinicius de Moraes.

Aliás, sempre me perguntei se algo dessa ambição catuliana justamente não se exprimiria nestes consagrados versos Chega de Saudade:

Pois há menos peixinhos a nadar no mar
Do que os beijinhos que eu darei
Na sua boca
Dentro dos meus braços
Os abraços hão de ser milhões de abraços
Apertado assim, colado assim, calado assim
Abraços e beijinhos,
e carinhos sem ter fim
Que é pra acabar com esse negócio
de viver longe de mim.


Homero Santiago é doutor em Filosofia e professor livre-docente de História da Filosofia Moderna da Universidade de São Paulo.

Imagem capa: https://imperiumromanum.pl/en/curiosities/kiss-in-antiquity/
Imagem mídia: Edusp/Divulgação
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