Por Mainá Santana

Para iniciar esta reflexão, gostaria de contar duas pequenas anedotas sobre crianças do meu cotidiano, cujos afetos são preciosos para entendermos alguns de meus argumentos relativos a esse mundo. Sempre me surpreendo com as crianças e com como elas nos promovem dados incríveis sobre a humanidade, reformulada a cada vida nascente.

O menino toca piano nas redes sociais pela primeira vez. É dessas crianças filhas de amigas e amigos com quem a gente fica quando os pais vão trabalhar nas noites, operar luz e som, fazer produção, atuar, cantar, dançar para outras plateias. Nessas famílias — porque mesmo que você seja artista, é seu direito querer uma família e crianças correndo na sala —, são as amigas e os amigos que cuidam uns dos outros, nem sempre a família de sangue é próxima. Parei para olhar a criança que tocava uma música cujos acordes a enchiam de silêncio. Dos dedos do menino escorria um tema de aventura e eu me lembrei de jogar videogame com ele antes de jantar e comer gelatina pra escovar os dentes e dormir. E de conversar até pegar no sono, cheirinho de cabeça de criança. O menino tinha um afeto sincero por histórias de grandes feitos da humanidade, ação, aventura, imaginação sem fim. Nada mais óbvio que a primeira música no piano fosse um tema desse tipo.

Não sei se ela me adotou como tia, então não posso chamá-la de sobrinha. A menina tem 9, e aos 7 inventava músicas em inglês que nenhum estadunidense entenderia, na frente de todos os artistas da cidade. O show da virada do ano fora dela e da banda formada por mais três crianças do bairro. Batia cabelo, tocava guitarra e fazia aviões de papel comigo sentada na escada. Os adultos conversavam ao longe em papos tão indecifráveis quanto suas letras. Mainá, vem ver meu show? Vou fazer mágica, preste atenção. Ai de mim que não prestasse, tinha choro, reclamação, puxada de braço pra chegar ao quintal.

São encontros não sadios os maiores fornecedores de cadeados em nossa porta de abertura para o mundo.

Como o menino que toca músicas de aventura no piano, as crianças me conectam pelo afeto. Abre-se instantaneamente uma porta dupla, da qual cada um de nós tem uma chave e decide ouvir a curiosidade de lidar com outro ser humano. Logo de pronto estou disponível à troca com aquela pessoa pequena de universos ainda não tolhidos por modos de fazer rígidos e firmes, já com critérios sobre o que gosta ou não, mas também disponível à experiência de olhar para a outra pessoa. E quando me despeço desse encontro, fica um fantasma de preocupação com outros encontros não sadios que essa pessoa jovem pode ter.

São encontros não sadios os maiores fornecedores de cadeados em nossa porta de abertura para o mundo. Em atendimento num espaço de brincadeiras coletivas, lembro-me de uma menina, 5 anos, me dizendo que tinha “muita gente ruim no mundo”. Tantos de nós crescem com essa sensação viva, passando por traumas, dilemas, questões até chegar à vida adulta. Talvez todos e, obviamente, com um ambiente melhor ou pior — ou bem pior, sempre importante pontuar —, com mais ou menos ferramentas para lidar com o mundo. Crescemos com essa sensação de rotular quem merece e quem não merece nosso amor e carinho, separando os bons dos maus.

Desenvolvemos estratégias neuróticas de hipercontrole, tentativas de previsibilidade, metemos os pés pelas mãos, tememos o futuro, pois pode não ter valido a pena o tempo e o afeto investidos, melhor resolver isso logo: “Precisamos subir um degrau nesse relacionamento”. Desenvolvemos estratégias obsessivas de fuga de responsabilidade, não assumindo nossos próprios sentimentos, vivendo no passado por algo acontecido, “ah, vamos com calma”, “não estou preparado(a) para um relacionamento sério”. Essas questões não estão mais, necessariamente, separadas por gênero e, em última análise, são complementares: há quem cobra e há quem é cobrado, numa relação de mútua necessidade. Ainda que haja um tempo entre o passado e o futuro, o presente, não conseguimos dar conta de estar aqui, decidindo abrir a porta como fazem as crianças.

Pois que abrir a porta entre adultos pode ser assumir um risco em dupla (ou em quantos couberem no relacionamento), em corresponsabilidade, desde que se estabeleça um ambiente de equidade na relação. Digo “pode ser” não apenas porque isso é uma escolha, mas também porque vivemos num país onde os casos de violência doméstica e feminicídio são altíssimos; aquele fantasma de preocupação que sinto pelas crianças trata de ressoar sobre o risco desproporcional que pessoas do gênero feminino correm por aqui. Por séculos, o corpo da mulher foi (é, mas está mudando) tido como objeto de prazer dos homens, não sem alguma resistência. Os jogos de sedução atribuídos ao público feminino, as estratégias e meandros, em minha visão, são em parte tentativas históricas de tomar controle de uma situação desfavorável, como estratégias de regulação social por meio da retomada de seus próprios corpos. A maior parte das pessoas aprendeu dessa maneira: isso é reforçado o tempo todo em revistas, livros, filmes, séries…

Então tem o príncipe, a princesa, a megera, o vilão, tudo isso é bem arquetípico. A questão é vender apenas a ideia de figuras com personalidades simples, que podem ser somente uma dessas coisas por vez, sem grandes questionamentos de si que sugiram outras nuances. Quando o “príncipe vira sapo” e/ ou “a princesa vira bruxa”, ninguém sabe como reagir, porque não aprendemos a ver a complexidade em si e no outro, apenas as expectativas do que poderia ser. Talvez você tenha até se encontrado em um relacionamento no qual não se reconhecia, não sabe como pôde reagir de tal ou tal maneira. Isso tem a ver com a falta de percepção de como você funciona em situações inesperadas ou de alta frustração. Na vida real — não nas redes sociais —, as pessoas enfrentam dilemas e questões impensáveis, cujas resoluções nem sempre passam por se responsabilizar por seus problemas e atos. Ainda mais em um relacionamento.

Evitar falar sobre as próprias fragilidades é mascarar-se perante o outro, o que pode dar a falsa sensação de controle, ou de garantia de uma maior proteção no relacionamento. Será que se alguém abrir mão, a relação se modifica? Certamente, mesmo que seja para caminhar para o seu fim. A escolha de estar com alguém implica deixar-se afetar por ele, compartilhar fragilidades e uma sequência de momentos — bons ou ruins — enquanto aquilo fizer sentido para quem está envolvido. E devagar passa a não ter sentido mergulhar no arquétipo da princesa que espera para viver um grande amor com um príncipe, pois a escolha é diária e é dos dois (quando dois). Isso permite abrir espaço para assumir que a falta existe, para entender que aborrecimentos e chateações são comuns, compreender que sim, temos questões mal resolvidas em outros momentos da vida. E sobre o que é bom? Valorizar e olhar aquilo que se pode oferecer e o que está sendo oferecido pelo outro pode ser de grande importância. E isso demanda um esforço sincero para driblar a aprendizagem social de outros tempos.

Fiscalizar mídias sociais, controlar mensagens, seguir, agredir a pessoa, antever uma situação ruim e ser cruel com a(o) outra(o). Existem limites éticos e judiciais que definem a máxima “Ninguém é posse de ninguém”. E essas ações, sejam elas pequenas ou grandes violências à subjetividade da outra pessoa, vêm de sentimentos de medo, posse, possibilidade de perda e de insatisfação; mas aí vale lembrar que ninguém é obrigado a satisfazer o que é da ordem do desejo do outro. Trocas, diálogos e pactos entre pessoas que se amam podem funcionar muito melhor que regras preestabelecidas por outrem (ou por um só).

É possível que alguns dos parâmetros antigos lhe caiam bem; seu desejo pode passar por ter uma festa de casamento gigante e ter filhos, por exemplo. A questão é entender se esse desejo é seu ou uma cobrança de outras pessoas sobre seu afeto, silenciando as suas vontades, ou mesmo se você já parou para duvidar desse desejo. Entendendo o que de fato é seu, você pode fazer escolhas melhores de parceiras(os). Também é possível que seu afeto esteja em se relacionar com pessoas por curto tempo e espaço, ou com mais de uma pessoa ao mesmo tempo. Vamos lembrar que muito afeto pode ser trocado em apenas uma noite e não apenas no quesito sexual. A única questão, em qualquer caso, é: vocês estão deixando os acordos transparentes?

Abro ou não concessão ao desejo do outro sobre o meu?

Apenas dizer “eu não quero me relacionar agora”, dependendo do contexto, não faz grande sentido. Se você está saindo com alguém, isso já é um relacionamento, você só está fugindo de um parâmetro colocado socialmente do que é “um relacionamento”. E se abra à possibilidade de isso ser parte apenas de sua fantasia, uma previsão do desejo alheio de se “relacionar” com você. Isso não significa que você deve fingir sentimentos pelo outro. As pessoas mentem para estarem umas com as outras; se escondem, evitam dizer o que sentem de verdade, dizem estar bem com coisas que não estão bem. Tudo isso também faz parte dessa lógica antiga de se submeter ao desejo alheio, e convidar a si e a pessoa para se responsabilizar por isso pode ser uma saída. Por favor, sem medir poder.

É possível ainda que você se questione e entenda que um relacionamento monogâmico, por exemplo, não funciona para você. E se a(o) parceira(o) não acredita em outra maneira de se relacionar, coloca-se então outra questão: abro ou não concessão ao desejo do outro sobre o meu? Muita conversa consigo mesma(o) e com a(o) parceira(o) para descobrir se existem nuances ou se as coisas são de fato “sim” ou “não”. Dentro desse exemplo, há um milhão de maneiras de se relacionar abertamente com pessoas, vocês se dispuseram a conhecer possibilidades? E é preciso lembrar que não existe ser humano cujos desejos são todos atendidos, então sempre há uma negociação, seja ela externa ou interna, e as decisões vêm com consequências: não existe certo ou errado, apenas uma escolha. O equívoco está em quebrar o pacto quando ele está posto.

Quando a menina me puxa pra ver seu show, eu digo que não quero e o que segue é um choro, eu não abri mão do meu desejo de ficar onde estou em prol do desejo dessa criança. O choro, nesse caso, é a tentativa de negociação, é a ferramenta que a criança encontra para fazer valer aquilo que quer. A tarefa do adulto me parece ser fornecer escuta, acolhimento, outras ferramentas — como nomear sentimentos — e outras possibilidades — como ficar apenas 3 minutos. É por meio de ações desse tipo que a criança aprende a entender seus sentimentos e a ser empática. Trazendo para o universo adulto, não adianta pensar em acusar o outro de ser infantil: cada um tem as ferramentas que tem, além do que, acho que não há pessoa em posição de dizer que todas as suas atitudes são adultas em relacionamentos. Mesmo que você esteja baseando seus parâmetros naqueles já estabelecidos, estamos todos aprendendo. O mundo está em transformação a cada segundo, as informações circulam rápida e abertamente. Até a traição (milenar, sintoma de acordos que perderam o sentido) está bem mais fácil de descobrir nesses tempos, com celulares, GPS e câmeras em todas as esquinas.

Talvez valha mais a pena usar a tecnologia para compartilhar experiências, ferramentas, textos, vídeos com a(s) pessoa(s) amada(s), para trazer outras cores à relação e entender o que é que se deseja quando está com outra pessoa. A tentativa de construir uma base de confiança em si e no outro a partir da lógica interna das pessoas envolvidas pode permitir o florescer de outros sentimentos, com parcerias mais tranquilas e menos preocupadas com aparências. De repente, o afeto, o amor compartilhado no relacionamento é o que vai ensinar a todos, no exercício da presença temporal e espacial, como vocês podem compreender a si e ao outro, nessa coisa nova que é estar junto na pós-modernidade, lidando com perspectivas tão diversas. Pode parecer trabalhoso e eu acredito que seja, de fato, mas com certeza também é mais proveitoso. Afinal, equidade, escuta, respeito, carinho e atenção só podem fazer bem.

* Mainá Santana é artista da dança, arte-educadora, escritora, poeta, subeditora, psicóloga, banca de editais e professora.

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