Por Homero Santiago

Há alguns meses a Netflix veicula As leis de Lidia Poët, série italiana que narra os percalços de uma jovem, na Turim de fins do século XIX, para conseguir advogar. Embora tenha obtido com êxito o título necessário, ela enfrenta todo tipo de preconceitos, vindos de toda parte, contra a sua condição feminina.

No primeiro episódio, a doutora Poët assume a defesa de um rapaz acusado de assassinato. Todos dão o caso por resolvido, afirmando que as pistas incriminam irrefutavelmente o réu; a única sentença esperada, pois, é a pena capital. As circunstâncias parecem tão cristalinas, tão incisivamente incriminadoras que… a jovem desconfia do veredito antecipado, contra tudo e contra todos. No curso das atribulações que esse posicionamento lhe custa, acompanhamos um genial diálogo (e devo a um colega me chamar a atenção para isso).

Será mesmo culpado o réu, interroga um jornalista? “Digamos que, quando todos pensam assim, sempre tenho dúvidas”, responde Poët. “Nesses casos, como a senhorita procede?”, insiste o jornalista, e então vem a explicação que aqui interessa de perto: “O senhor nunca estudou filologia? […] Quando um texto é transmitido em várias versões, a mais fácil é frequentemente a menos provável. Eu a descarto e me concentro sobre todas as outras”.

A perspicaz resposta faz fulgurar o poder dessa ciência nomeada “filologia”. O termo provém de uma combinação grega: phílos, “amor, afeição”, e lógos, “palavra, razão”; portanto, a palavra φιλολογία descreve, ao menos literalmente, uma especial dedicação ao estudo da literatura, bem como o cultivo da argumentação e do raciocínio. Na prática (e é a isso que se refere a advogada), um dos ofícios básicos do filólogo é estudar documentos antigos. Porém, mais que simplesmente estudá-los como se estivessem “dados”, trata-se em primeiro lugar de restabelecer-lhes, na medida do possível, a forma original. Tomemos como exemplo a Eneida, célebre poema latino do século I a.C. Uma vez composto, todos que o quisessem ler (é bom lembrar que o mais comum era ouvir poesia declamada) precisavam recorrer a uma cópia. De fato, por séculos, até a invenção da imprensa, só as cópias permitiam a difusão dos livros. Como não é difícil imaginar, era a situação ideal para o surgimento de variantes entre o texto copiado e a cópia, e a cópia da cópia, seja por erro e desatenção, seja por vontade deliberada.

Dado isso, como procede um filólogo? Digamos que queira preparar uma edição rigorosa da Eneida, o que chamamos de “edição crítica”. Ele se informa sobre todas as cópias existentes, traça a genealogia delas, estabelecendo as filiações (qual manuscrito foi copiado de qual manuscrito), coteja as variantes e, finalmente, deduz qual foi o estado original do texto. Tarefa tanto mais complicada porque ao longo dos séculos os originais (se é que um dia existiram) quase sempre se perderam e só há cópias de cópias de cópias sobre as quais trabalhar. Decerto, tudo isso é feito na medida do possível, sempre aproximativamente; para o filólogo não existe o estágio final, tudo é sempre provisório — e por isso, ao contrário do que vendem as editoras, nunca existe edição “definitiva” de nenhum texto.

Eis o modelo cultivado por Lidia Poët: o procedimento detetivesco do filólogo que envolve um raciocínio meticuloso e uma paciente desconfiança mobilizados no intuito de, desbaratando os simplismos que encobrem o real, resgatar a verdade — e no caso, em vez da verdade dos textos, aquela dos fatos a serem avaliados por um juiz e que decide o destino de um réu. Para sorte de seu cliente, a advogada tenta “ler” o mundo como o filólogo lê um texto, com a certeza de que as coisas jamais são tão simples quanto parecem e a verdade frequentemente é mais complexa do que gostaríamos que fosse.

Assim procedendo, curiosamente, a jovem advogada estava em convergência com um dos maiores filósofos contemporâneos, Friedrich Nietzsche, que começou a carreira como filólogo e jamais deixou de louvar essa disciplina naquilo que ela tem de arte da paciência rigorosa e da desconfiança meticulosa. Uma forma de pensar, também defende Nietzsche, a ser imitada.

“Pois filologia é a arte venerável que exige de seus cultores uma coisa acima de tudo: pôr-se de lado, dar-se tempo, ficar silencioso, ficar lento — como uma ourivesaria e saber da palavra, que tem trabalho sutil e cuidadoso a realizar, e nada consegue se não for lento. Justamente por isso ela é hoje mais necessária do que nunca, justamente por isso ela nos atrai e encanta mais, em meio a uma época de ‘trabalho’, isto é, de pressa, de indecorosa e suada sofreguidão, que tudo quer logo ‘terminar’” (Aurora, prólogo).

Como pode um pensar tão humilde, tão comezinho como o filológico, ser tão poderoso? Tanto em Nietzsche quanto nas palavras da senhorita Poët, podemos discernir a mesma explicação: ao contrário dos ingênuos, o filólogo sabe que a simplicidade costuma ser um disfarce do falso; à diferença dos afoitos, ele sabe que a pressa é a inimiga do pensamento.


Homero Santiago
Doutor em Filosofia e professor livre-docente de História da Filosofia Moderna na Universidade de São Paulo.

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