Por Homero Santiago

“Imaginava como seria um filme sobre um dia inteiro, comum, na vida de uma pessoa absolutamente comum, do momento do despertar até a hora de deitar-se. As cenas prosaicas, o café da manhã, a saída apressada para a escola, o almoço, não, esse filme não teria graça nenhuma.”

Encontrei essas palavras num tocante livro que li recentemente (A revolta das vísceras, de Mariluce Moura) e, no improviso da livre associação, meu pensamento foi remetido a um filme que nada tem a ver com a temática do romance. Deste, hoje não falo (quem sabe noutra oportunidade); restrinjo-me a resgatar do esquecimento umas poucas ideias sobre a película assistida há meses.

De prima, tendo a pensar que quase todo mundo assinaria embaixo da declarada preferência por filmes mais “vibrantes” a outros, quiçá infilmáveis, limitados à monótona narrativa da monótona labuta de pessoas monotonamente comuns. Eu mesmo pensava assim. Até ver, contemplar e amar Dias perfeitos, do diretor alemão Wim Wenders, que se apresentou nas telas brasileiras no semestre anterior. De fato, a bem dizer a obra não vai muito além da reconstituição do cotidiano de um calado protagonista, que se esmera numa rotina rigorosamente previsível (caricatamente “oriental”), repetida um dia após o outro e no seguinte também; do despertar e cuidar de suas plantas até o adormecer precedido pela leitura, entressachando-se os previsíveis desjejum, trabalho, almoço, banho, janta. Uma mesmice, uma monotonia, que não obstante atinge o píncaro da perfeição, aquela referida no título do filme e que termina por encantar o espectador.

A insistência num único tom (é isso a mono + tonia, e não por acaso nas linhas anteriores insisti no termo) costuma causar espécie na maioria das pessoas. Injustificadamente, a meu ver. Como sabem esportistas e atores que repetem indefinidamente os mesmos gestos (em francês, curiosamente, o “ensaio” de uma peça de teatro ou de uma execução musical diz-se répétition), a reiteração do mesmo é a via áurea do aperfeiçoamento do que é repetido e de nossa relação com isso.

A muitos soará risível pensar assim. É que imaginam que o problema esteja na repetição em si. Não, o problema recai sobre o que se repete. Embora as pessoas acreditem odiar a rotina, em verdade odeiam aquilo que é rotineiro. Detestam, por exemplo, menos a repetição do trabalho que o trabalho mesmo que se repete; não detestam ir sempre aos mesmos lugares, odeiam sim os lugares a que sempre vão. O problema, pois, não está na rotina, mas naquilo que escolhemos ou nos coube como elementos rotineiros e em nossa relação com eles. É fato que existem rotinas mais e outras menos agradáveis; daí uma interrogação crucial: quando alguém odeia a sua rotina, qual o verdadeiro objeto do ódio, a rotina em si ou a si próprio que se meteu nessa rotina desagradável?

O valor de Dias perfeitos é desvelar uma verdade não rotineira mediante a reconstituição de uma perfeita rotina, elevada à condição de obra de arte, pois cuidadosamente plasmada e laboriosamente protegida no intuito de ser prazerosamente vivenciada. Eis a quintessência da obra delicada, belíssima que Wim Wenders elaborou.

Como conceber essa insólita perfeição joeirada do ramerrame da vida comezinha frequentemente abominada?

Certa vez, sugeriu Dante Alighieri que o que chamamos “beleza” é só onde os nossos olhos descansam. Matutando com meus botões, pergunto-me se não devemos pensar algo semelhante do que nomeamos, em geral sem considerações e com má vontade, “rotina”? Para lá de toda preconceituação ligeira que tende a depreciá-la, por que não a conceber como isto: um tempo de relaxamento, um pouco daquilo que chamam de zona de conforto? Como Dante dizia que o belo descansa nossos olhos, é bem possível que a rotina, desde que conhecida e facilmente manejável, seja capaz de nos oferecer reconfortante guarida aos membros do corpo e à musculatura mental incessantemente cobrados pelos trâmites intempestivos do dia a dia. Não é difícil compreender por que a rotina, a despeito do que diz o correntio, descansa-nos muito mais que férias atribuladas e imprevisíveis. A fácil lida com o já conhecido é garantia de distensão relativamente às surpresas, muitas vezes desagradáveis, de um cotidiano corrido que nos aliena, isto é, faz-nos outros de nós mesmos, de tal modo que nele não nos reconheçamos.

Ora, a rotina perfeita e consciente de si, como a de Dias perfeitos, nasce de uma seleção deliberada que conforma um todo a ser vivido amorosamente, como um ato de amor. Não nos enganemos: o amor gosta da repetição; quer perdurar e por isso execra o imprevisto; sonha eternizar o contato com o que ama. Por isso, no filme, a mínima tarefa cumprida pelo protagonista ganha relevância, inserida que está num todo, o da vida como obra de arte de quem foi feliz em criar o perfeito e que, feito isso, relaxa com a consciência tranquila e o desejo satisfeito de quem ama cada dia e cada aspecto de sua existência porque ali se reconhece a ponto de poder exclamar: isto sou eu!


Homero Santiago é doutor em Filosofia e professor livre-docente de História da Filosofia Moderna da Universidade de São Paulo.

Foto capa: Divulgação Dias perfeitos/Viajento
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