Por Homero Santiago

“Toda a infelicidade dos homens provém de uma só coisa: de não saber ficar quieto num quarto.”

Essa aguda constatação do francês Blaise Pascal, morto em 1632, inclui-se numa obra póstuma que a tradição convencionou chamar Pensamentos e que recolhe as inúmeras anotações e os breves esboços de texto que ele colecionava em vista da composição de uma apologia da religião cristã. Embora feita há quatro séculos, a observação protagonizou um caso raro, quiçá único, na história do pensamento.

Façamos um rápido exercício de memória. Há quatro anos, em 11 de março de 2020, a Organização Mundial da Saúde (OMS) classificou a rápida disseminação do coronavírus como “pandemia”; no dia 17 do mesmo mês, o Brasil registrou a sua primeira vítima por Covid-19. A partir daí a história é — infelizmente — bem conhecida demais para que eu precise prosseguir. O que aqui efetivamente importa é que a pandemia e sobretudo as agruras do isolamento social que vivenciamos há tão pouco tempo vieram demonstrar, a distância de centenas de anos, como se num inacreditável experimento planetário, a verdade deste aspecto da condição humana detectada por Pascal: as gentes não querem nem conseguem sossegar; são naturalmente irrequietas; preferem o risco da doença mortal a recolher-se e ter de encarar a si mesmas.

O trancamento bloqueia a nossa incessante busca por “divertimentos”, isto é, por tudo aquilo que tem o condão de nos distrair e fazer esquecer da vida, do mundo e, principalmente, de nós mesmos e da condição em que estamos: do ponto de vista de Pascal, seres do meio. Cada um, desde que reflita um pouco sobre si, reconhece tangenciar grandezas (quem nunca fez uma boa ação? quem nunca fez planos grandiosos ou pelo menos sonhou com algo melhor?) e ao mesmo tempo perpetrar baixezas (quem nunca as praticou, que atire a primeira pedra). Em todo e qualquer indivíduo, convivem algo de altivo e algo de baixo, e nós estamos inexoravelmente entre esses polos. Fosse só uma coisa ou só outra, e tudo estaria resolvido; mas isso é inconcebível, justamente porque somos humanos. Estamos e vivemos, com uma perturbadora necessidade, entre o finito e o infinito, o baixo e o alto, a miséria e a grandeza, pisando o pó da terra e siderados pelo céu — e sempre podendo seguir numa ou noutra direção; para nossa alegria ou para nossa tristeza.

Qual o motivo dessa condição periclitante? Para explicá-la, Pascal assume a perspectiva de um cristão exigente e ampara-se numa teologia que identifica, em nosso ser, uma ambiguidade fundamental decorrente do pecado cometido por Adão: o ultraje infringido pela criatura finita a seu criador infinito; injustiça incomensurável cujos efeitos marcam indelevelmente a nossa natureza e se alastram pela história humana. Por isso estamos condenados ao meio. Nem no inferno nem no paraíso, toca-nos viver neste mundo correndo todos os riscos a cada momento, como se numa corda bamba. É isso que nos irrequieta, e é para escapar dessa condição, ou pelo menos não pensar tanto nela, que sempre estamos em busca de distrações e divertimentos que funcionem à guisa de proteção e paliativo: os jogos envolventes, os comes e bebes infinitos, a vida social intensa, e por aí vai. Inversamente, ficar quietos e sem divertimento nos entristece, pois nos obriga a pensar em nossa condição e produz assim o insuportável desnudamento das causas de nossa infelicidade, a saber, nós mesmos. De um ponto de vista pascaliano, tal como expresso na nota acima referida, está aí o motivo de o isolamento — quedar trancado e com tempo para nós mesmos — ser aterrorizante.

Ora, não foi uma perturbação desse tipo que tantas pessoas padeceram durante a pandemia, com a obrigação de ficar em casa? É claro que muitos sentiam a pressão dos afazeres sem os quais não havia renda; outros tantos tinham questões urgentes a resolver e a perspectiva de deixá-las em aberto os acossava. Mas não é desses que se trata. Deveras reveladora de nossas agruras é a atitude dos que, sem maiores perrengues financeiros, sofriam simplesmente por ter de ficar quietos, afastando-se momentaneamente das atribulações diárias que amiúde os enleiam sem deixar tempo para mais nada. Mal comparando, padeciam de algo próximo daquela ansiedade, irritação exprimida por quem “perde” um ou dois minutos para atravessar uma rua; sempre apressado para não fazer nada, incapaz de sossegar um momento, como se o mundo fosse por isso acabar. Eis o peculiar e paradoxal mal-estar descoberto por Pascal: a irrequietude provocada pelo imperativo da quietude. É o nosso drama, diria ele.

Convenhamos, não é preciso esposar a teologia veiculada por Pascal para reconhecer a sutileza de sua observação e de seu entendimento da condição humana, sempre intermediária e por isso mesmo decisiva para a nossa existência. Entre uma coisa e outra, insinua-se a tarefa de descobrirmos, dadas as circunstâncias, como lidar com o que somos e talvez, tendo um pouco de sorte, aprender a ficar quietos num quarto, quando isso for necessário.


Homero Santiago
Doutor em Filosofia e professor livre-docente de História da Filosofia Moderna na Universidade de São Paulo.


Foto da capa de Ronaldo Santos/Unsplash
Foto de André Spilborghs/Unsplash
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