Por Homero Santiago
Poucas coisas na vida assustam tanto quanto a morte. Não sabemos quando nem onde ela nos alcançará — como canta Raul Seixas: “A morte, surda, caminha ao meu lado / E eu não sei em que esquina ela vai me beijar” (“Canto para a minha morte”). A única certeza é que morreremos. Fato incontornável e inapelável para todo ser vivo, a morte é alcunhada “a indesejada das gentes”. Nesse dado indubitável, os antigos gregos identificaram a diferença específica da humanidade: morrer é um traço geral que, para além das línguas e culturas, permite designar os seres humanos como “mortais” em contraposição aos deuses “imortais”.
Mas será que a morte é, realmente, o inverso da vida? É uma questão que sempre me acode. Decerto nenhum ser humano pode viver o morrer (o oxímoro da construção frasal o demonstra); tão certo quanto, porém, é que nós vivenciamos a morte a todo momento, na medida em que é constitutiva de emoções e afetos, saberes e estratégias, de nossa vida. Um reles exemplo o patenteia: qual a justificativa para a existência de normas de segurança ou indicações médicas do tipo “pare de fumar” senão a fragilidade da vida e a ameaça da morte? Flagrantemente, tudo isso diz respeito menos à vida do que à morte. Se esta não existisse, talvez nossa medicina, nossa legislação, nosso mundo seriam bem diferentes. Só que não. Persiste a nossa mortalidade como elemento fundamental, mesmo que inconsciente, de nosso viver. Tomo a liberdade de chamar a atenção do leitor para este dado surpreendente: algo que jamais viveremos é o que, contas feitas, molda a nossa vida.
Será absurdo? Pelo contrário, essa constatação básica fornece o cerne de uma profunda reflexão do escritor José Saramago no genial romance Intermitências da morte (2005). Acompanhamos ali uma meditação sobre a morte que se desdobra em perspectivas inusitadas, abordando as sempre tensas relações entre vida e morte. Um texto tão sério quanto divertido, saboroso de ler e instigante de pensar.
“No dia seguinte ninguém morreu.” A notícia que os leitores leem à primeira linha é inusitada, pois decerto “contrário às normas da vida”; de repente, em tempo e país quaisquer, simplesmente não se morre mais. O curioso é que essa transformação, ao início prenúncio de um tempo feliz, ou seja, a eternidade outorgada aos felizardos que doravante não morreriam, acarreta os maiores desarranjos e tribulações. A coisa vai num ritmo que, a certo momento, muitos começam a almejar o retorno, quanto antes, naquela terra, da “indesejada”. Com perdão de mais uma vez servir-me de um oxímoro, é como se a ausência da morte tornasse a vida funesta; os negócios relacionados à morte (hospitais, seguradoras, funerárias etc.) estremecem, a vida se desordena.
Apesar do delicioso sarcasmo de Saramago ao descrever todas essas situações, o interesse mais propriamente filosófico da obra está, precisamente, em nos despertar para quanto nossa visão de mundo mais profunda, os variados aspectos de nossa vida vincula-se ao morrer. Ao longo do romance a morte vai ganhando os ares de fator determinante de nossa civilização e, particularmente, de duas de suas maiores manifestações: a religião e a própria filosofia.
Com o fim da morte e seus efeitos, necessariamente toda a vida precisa ser repensada. Por isso o governo do país em que não mais se morre institui uma comissão interdisciplinar composta de filósofos e teólogos de vários credos para discutir o assunto. Apesar das divergências, um significativo consenso desponta ao longo das discussões: sem a morte, a religião e a filosofia estão igualmente condenadas à irrelevância. Todas as religiões, esclarece um teólogo, “não têm outra justificação para existir que não seja a morte”. Elas existem “para que as pessoas levem toda a vida com o medo pendurado ao pescoço e, chegada a sua hora, acolham a morte como uma libertação”. Logo, o desaparecimento da morte deixa as religiões sem função. Algo assim valeria também para a filosofia. Esta, argumenta um membro da comissão, “precisa da morte como as religiões, se filosofamos é por saber que morreremos”; e na imediata sequência recorda um célebre dito de Michel de Montaigne: “filosofar é aprender a morrer”.
Por trás dessas explicações vão alguns simplismos morais: parece que, por não morrermos, entraríamos no vale-tudo; já ninguém temeria a justiça pós-morte (um recorrente tema religioso) nem se preocuparia em viver bem no presente (um assunto que atravessou a filosofia desde o seu início). Ora, será mesmo que só a consciência de que um dia morreremos nos guarda de cometermos monstruosidades? Será que se soubéssemos não morrer nenhum cuidado teríamos com relação ao modo como vivemos?
Francamente, acho que não. Às vezes, o tema da morte como condicionante da vida me parece crucial; fico imaginando que o modo como cada um vive depende muito da maneira como concebe e antecipa o próprio morrer. Não sei. Certo é que não me soa desatinado este genial verso de Raul: “Morte, morte, morte que talvez seja o segredo desta vida”.
Homero Santiago
Doutor em Filosofia e professor livre-docente de História da Filosofia Moderna na Universidade de São Paulo.