Por Anderson Borges Costa
Você já perdeu alguém próximo, um parente, um amigo? O luto, sentimento de tristeza profunda causado pela morte de pessoas queridas, é uma luta, e muitas vezes nos recusamos a aceitar essa perda. É sobre o luto que se desenvolve a narrativa no curto e instigante romance É a Ales, do autor norueguês Jon Fosse, vencedor do Prêmio Nobel de Literatura em 2023.
A leitura de É a Ales é comparável ao ato de olhar um quadro, uma pintura. Neste livro, vemos a personagem Signe sentada no banco de sua casa, olhando a janela. A paisagem que ela enxerga é a cena de seu marido, Asle, saindo de casa em uma noite escura e fria, em um barco, há mais de 20 anos. Ele nunca mais voltou, mas a janela é uma conexão de Signe com seu passado, com o marido que não está mais, com a vida que já se extinguiu. A cena de Signe observando a janela é uma forma de suspender o tempo, como fazemos ao observar um quadro no museu. Nessa narrativa, o tempo é esticado.
Signe mora na Noruega, à beira de um fiorde, entrada de mar originada pela erosão causada pelo gelo entre altas montanhas rochosas. É no fiorde, no escuro da noite fria que Signe vê Asle partir. Em luto, ela suspende o tempo, e a narrativa estende possibilidades.
O ponto de vista é mutante. Às vezes, somos levados pela Signe sentada em sua casa olhando a janela. De repente, somos o Asle, e estamos no mar. Ele também observa o seu passado, em uma cena na qual sua trisavó (a Ales do título) está com o netinho, bisavô de Asle, brincando com ele, jogando água com a cabeça de uma ovelha em um ritual familiar. O passado dos mortos segue vivo no presente pela janela. Os nomes Asle e Ales se confundem na paisagem da sala.
O livro é escrito em um único parágrafo. A pontuação é fluida, não há praticamente pontos finais, há quase só vírgulas, o que sugere que nada termina, que tudo está acontecendo sem parar, o ontem é o agora. No fundo de um quadro que se mostra através da janela de nossa casa, o luto é uma luta para que a morte se transforme em vida, ainda que disfarçada de lembranças. As poucas páginas de É a Ales são décadas que podem ser vistas como séculos de um presente que não queremos perder nunca. No escuro de uma noite fria e gelada, acenda a luz. E boas leituras!
É a Ales, de Jon Fosse
Tradução: Guilherme da Silva Braga
Editora Companhia das Letras
Anderson Borges Costa
Formado e pós-graduado em Letras (Português/Inglês/Alemão) pela Universidade de São Paulo. Professor de Português e Literatura na Escola Internacional St. Nicholas. Escritor, autor dos romances Professoras, Rua Direita e Avenida Paulista, 22, do livro de contos O livro que não escrevi e de peças teatrais.