Por Clóvis de Barros Filho e Arthur Meucci
[Texto publicado no livro Criança e consumo: 10 anos de transformação. São Paulo: Alana, 2016.]

Resumo: Os ideólogos patrocinados pelas associações de anunciantes e pelas associações dos meios de comunicação defendem a tese de que a resolução 163 do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda), bem como qualquer outra norma ou lei que restrinja a publicidade infantil, ocasiona dois tipos de infração ético-política em uma perspectiva liberal: a intervenção do Estado nas liberdades de escolha e na formação da família[1] e a legitimação de um tipo de censura similar à praticada por Estados totalitários que não aceitam o livre mercado e o sistema democrático[2].

Pensando nos fundamentos teóricos da liberdade individual, bem como nas teorias clássicas do liberalismo, constatamos duas distorções nos argumentos utilizados pelos defensores da livre regulamentação da publicidade infantil que comprometem o debate do problema em questão. Para apresentá-las, este texto será estruturado em duas partes: na primeira, são analisados os argumentos éticos que consideram as restrições publicitárias um ataque às liberdades individuais e de expressão; na segunda, apresenta-se uma solução liberal para os problemas atuais e futuros por meio da educação para os meios de comunicação no ensino básico.

Palavras-chave: Publicidade infantil. Ética. Educação. Ensino básico.

 

Parte I – Ética

Os discursos contrários à regulamentação da publicidade infantil defendidos pelas associações de anunciantes e pelos meios de comunicação partem de premissas liberais que defendem a liberdade individual e o livre mercado e propõem uma luta contra o fantasma dos “governos totalitários comunistas”. Porém, ao analisarmos a questão sob a ótica liberal, constatamos que as regulamentações não contrariam o liberalismo e que as atuais práticas publicitárias possuem desvios éticos que abalam a confiança da sociedade no capitalismo.

Contexto

Antes de iniciar a defesa sobre o problema dos anúncios publicitários voltados ao público infantil, é preciso deixar claro que essa perspectiva é um contraponto aos argumentos em debate no campo político sobre o tema. Nem a ética nem a economia liberal possuem valores universalmente aceitos — tampouco são um discurso dominante em nosso país.

As críticas sociais às privatizações feitas no Brasil no final do século XX, bem como as constantes derrotas de partidos políticos liberais, mostram que a sociedade brasileira não está alinhada com os valores por eles defendidos. No campo político, ganha as eleições quem promete qualidade nos serviços públicos e estratégicos de bem-estar social, mesmo em estados ricos como São Paulo. No campo econômico, tem prevalecido o apoio popular por medidas econômicas keynesianas.

Mas de que adianta fazer uma comunicação dirigida às crianças? Elas teriam a capacidade de assimilar as informações e fazer escolhas racionais?

 

Ao olharmos com atenção para a história política do Brasil, constatamos que o país nunca teve tradição de formar intelectuais e políticos verdadeiramente liberais. Via de regra, setores conservadores e segregacionistas, como os antigos Partido Republicano Paulista e Partido da Frente Liberal, utilizam-se de maneira indevida do discurso liberal para defender privilégios da elite econômica, excluindo uma grande parcela da população (apartheid social), além de medidas autoritárias — posturas radicalmente contrárias ao liberalismo.

Estamos cientes de que um debate restrito ao campo ideológico liberal não representa os valores éticos dominantes no país e exclui outras perspectivas éticas, políticas e econômicas igualmente legítimas. Também temos consciência de que há várias correntes liberais em luta pela definição das interpretações da vida social e econômica. Por esse motivo, decidimos utilizar teóricos clássicos como John Locke, Adam Smith e John Stuart Mill, bem como pensadores contemporâneos do atual campo liberal, como Milton Friedman.

Homo economicus

A primeira tese defendida pelos ideólogos contrários à regulamentação é que os seres humanos, inclusive as crianças, devem exercer suas liberdades de escolha. A publicidade infantil serve para ajudar os mais novos na escolha dos produtos que consideram mais pertinentes, e qualquer interferência exterior nesse processo prejudica sua aprendizagem sobre o ato de consumir.

Um dos pilares da teoria liberal é a concentração do Homo economicus. Explicando de maneira didática, temos de conceber todos os humanos como seres racionais e egoístas, pois tomam decisões para evitar as próprias tristezas e maximizar seu bem-estar. Essa concepção já se encontrava na filosofia de John Locke no livro Ensaios sobre o entendimento humano ([1690] 2012) e tomou forma com Adam Smith, no clássico A riqueza das nações ([1776] 2003). Atualmente, liberais contemporâneos como Friedman chamam esse modelo de “teoria da escolha racional” ([1980] 2015).

Segundo a teoria liberal, homens e mulheres tendem a fazer escolhas que lhes ofereçam maior utilidade (satisfação) com o menor esforço possível, maximizando assim os ganhos. Para que a “escolha racional” seja exercida livremente, ela precisa preencher dois requisitos essenciais: primeiro, o individualismo deve estar em plena posse das faculdades mentais; segundo, o indivíduo deve ter capacidade de avaliar os benefícios e os custos que cada ação pode lhe promover. É sobre esses dois requisitos que teceremos críticas aos publicitários.

A publicidade é um tipo de comunicação utilizada por uma empresa para divulgar informações sobre os produtos. Sua função é convencer que um produto, ou uma marca, é melhor que outro, ou seja, que possui melhor custo-benefício. Mas de que adianta fazer uma comunicação dirigida às crianças? Elas teriam a capacidade de assimilar as informações e fazer escolhas racionais?

Para poder decidir, uma criança ou um pré-adolescente precisa estar em posse das faculdades racionais, o que não ocorre. A psicanálise de Freud e a teoria do desenvolvimento cognitivo de Jean Piaget ([1955] 1976) provam que nos primeiros anos de vida os humanos são regidos pelo inconsciente, pelas fantasias infantis, estando limitados no plano cognitivo ao período sensório-motor (0 a 2 anos) rumo ao operatório concreto (7 a 12 anos). Logo, crianças e pré-adolescentes não têm plena posse das faculdades racionais. Não faz sentido persuadi-los com informações, pois não são capazes de escolher o que é melhor para si.

Nesse ponto, podemos afirmar que toda comunicação dirigida ao público infantil tenta persuadir por meio do discurso lúdico, pois se trata de um público incapaz de tecer um julgamento racional. As crianças são incapazes de saber se os produtos estão dentro do orçamento da família, se são seguros para a sua idade, se o consumo de certos alimentos, como salgadinho, biscoito ou refrigerante, pode desencadear problemas como alergia, obesidade, pressão alta, ansiedade etc.

Apelo aos pais

Tendo consciência da incapacidade infantil para realizar escolhas racionais, membros do Conar[3] defendem que as mensagens publicitárias de produtos voltados a esse público sejam destinadas aos pais, capazes de fazer escolhas racionais para os filhos.

Essa estratégia soluciona o primeiro requisito da teoria da escolha definida pelos liberais, mas não o segundo, a capacidade de analisar a relação custo-benefício por meio da comunicação publicitária.

O processo pedagógico deve esclarecer e advertir sobre eventuais efeitos nefastos  que a recepção do produto informativo pode produzir, não apenas reforçá-los.

 

Os produtos infantis utilizam em comerciais muitas linguagens iconográficas de apelo infantil, como imagens de desenhos animados: Batman®, Barbie®, Galinha Pintadinha®, entre outros. A criança confia nesses personagens e não sabe diferenciar claramente a fantasia do desenho e a realidade do produto que pode lhe fazer mal — a administração da beleza da Barbie® pode levar ao consumo de doces e sucos calóricos que não a deixarão com a aparência da personagem[4], mas que acarretarão problemas de saúde, como obesidade infantil e diabetes.

O problema das mensagens publicitárias e das embalagens é que elas não advertem os pais dos potenciais efeitos nocivos que tal tipo de produto pode causar — intoxicação, câncer, problemas renais, hipertensão, alta no colesterol, diabetes etc. Em uma ação racional, o indivíduo deve ter capacidade de avaliar os benefícios e os custos que cada ação pode lhe oferecer, mas na publicidade infantil há um exagero sobre as qualidades do produto e falta informação sobre os danos que ele pode gerar.

O melhor exemplo de comunicação correta é a publicidade de cigarro. Para cada imagem bonita de um logotipo ou de um ator, há um espaço de igual tamanho com advertências e imagens que avisam o consumidor dos riscos que ele está correndo. É uma solução justa, pois não se proibiu a comercialização do produto, mas a comunicação propicia uma escolha mais consciente, e os impostos altos pagam o tratamento de câncer causado pelo consumo. Se funciona para o cigarro, por que não funcionaria para os produtos infantis?

John Stuart Mill, defensor radical das liberdades e do comércio, advertiu sobre a questão infantil em seu livro A liberdade ([1859] 2000):

Talvez seja desnecessário dizer que esta doutrina (da liberdade individual) se aplica unicamente aos seres humanos que atingiram a maturidade de  suas faculdades. Não nos referimos, portanto, às crianças ou aos jovens cuja idade inferior à determinada por lei como a da maioridade (MILL, 2000, p. 18).

Por que restringir?

Vimos que na atual conjuntura, a publicidade infantil desrespeita a teoria da escolha racional e coloca os consumidores em risco potencial contra sua economia e seu próprio corpo. As restrições de comunicação e oferta não seriam um atentado às liberdades individuais?

John Stuart Mill escreveu uma verdadeira apologia às liberdades individuais, defendendo o livre comércio de bebidas alcoólicas e até mesmo o de drogas. Para ele, as “funções da polícia” só devem intervir contra a liberdade com fins de prevenir crimes ou acidentes, nada mais. Ele sentencia: “O único propósito de exercer legitimamente o poder sobre qualquer membro de uma comunidade civilizada, contra sua vontade, é evitar dano aos demais” (2000, p. 17).

O autor posicionava-se contrariamente às restrições comerciais impostas pelos governos de qualquer país, inclusive o seu, mas não era radical, gozava de bom senso. No livro A liberdade, ele aponta um problema similar ao descrever uma ponte prestes a cair. Um indivíduo deseja atravessar a ponte, mas não foi advertido do perigo. Então, o filósofo pergunta: podemos utilizar a função de polícia e impedi-lo de atravessar a ponte?

A resposta que Stuart Mill oferece também serve para as questões referentes às restrições publicitárias: é legítimo deter a liberdade do indivíduo para informá-lo do perigo, pois “a liberdade consiste em fazer o que se deseja, e ninguém deseja cair no rio” (2000, p. 147). Ele continua a argumentação: “A despeito disso, quando não existe, não a certeza, mas o perigo de dano, ninguém, além da própria pessoa, pode julgar a suficiência dos motivos que o podem levar a se expor ao risco (a menos que se trate de uma criança ou um desvairado)”[5] (2000, p. 147).

A liberdade individual autoriza as pessoas a se colocarem em perigo quando conscientes do risco, exceto aqueles que não estão em plena posse da faculdade racional: as crianças ou os desvairados. Se uma comunicação publicitária induz a uma compra que coloque as crianças ou a comunidade em risco, ela deve ser impedida pela sociedade para evitar danos. O pensamento liberal é muito claro nesse ponto e não abre espaço para outros tipos de interpretação.

Censura ou justiça? O anticapitalismo

Do ponto de vista liberal, colocar a questão da restrição publicitária em um falso debate entre “capitalismo versus socialismo” ou “democracia versus ditadura” é tão condenável do ponto de vista ético quanto as mensagens publicitárias que tentam seduzir o público infantil.

A restrição publicitária é uma questão de justiça, não de censura. Se os publicitários fossem capazes de se autorregular de maneira eficiente, respeitando a sociedade em detrimento do lucro imoral, nós certamente não defenderíamos uma ação estatal tão drástica no funcionamento do mercado.

Como conclusão desta análise ética do discurso de defesa dos publicitários, podemos afirmar que suas estratégias são anticapitalistas, pois atentam contra o sentimento de confiança necessário para a manutenção do sistema. John Locke, Adam Smith, John Stuart Mill, Milton Friedman e, recentemente, Eduardo Giannetti afirmam que a “mão invisível do mercado” necessita de um imenso depósito de confiança nos agentes capitalistas — nesse caso, o produtor e o anunciante. Eduardo Giannetti fala da desconfiança do povo brasileiro em relação ao livre mercado, consequência de práticas de desrespeito por parte de empresários e publicitários (1993).

A primeira quebra de confiança reside na imposição de uma relação capitalista com as crianças, impedida por questões psicofisiológicas, sendo que os efeitos nocivos serão creditados injustamente às liberdades mercantis do capitalismo. A segunda ruptura de confiança reside na oferta de produtos cheios de virtudes e que não advertem sobre os efeitos colaterais, contribuindo para a insegurança em relação à honestidade das empresas. O terceiro malefício reside nos prejuízos referentes ao comércio indiscriminado de produtos infantis que prejudicam a saúde do público. Exemplos disso são o sedentarismo infantil causado por alguns brinquedos e o consumo de alimentos inapropriados para crianças.

Quem pagará a conta dos problemas de saúde gerados pela indústria da publicidade infantil? O Estado e os planos de saúde privados. O governo terá de aumentar os impostos (como a volta da CPMF) para suprir as demandas negativas geradas pela publicidade, e a saúde privada se tornará pouco atrativa, pois enfrentará um aumento gradativo dessa demanda. Os argumentos do Conar nos levam a acreditar que ser capitalista é aceitar relações injustas entre as empresas e os consumidores.

Parte II – Educação

A questão da publicidade infantil revela outro problema: o de pais e educadores preocupados em ensinar crianças e jovens a se relacionar com os meios de comunicação. A mídia está presente em nossa vida e pouco se sabe sobre seu funcionamento. Soluções radicais, como a restrição da publicidade infantil, apesar de necessárias na atual conjuntura, revelam a incapacidade social de lidar com os desafios que surgiram com o desenvolvimento tecnológico.

A solução liberal para esse problema passa necessariamente pela educação. Uma função pública e irrestrita para os meios de comunicação no ensino básico pode ajudar a próxima geração de jovens consumidores a refletir racionalmente sobre as estratégias de persuasão empregadas pela mídia. De John Locke a Milton Friedman, os liberais defendem que a educação pública adapte-se ao mundo na tentativa de solucionar os novos desafios impostos pelo mercado.

Contexto

Nossa sociedade de consumo é estruturada pela comunicação midiática. Vivemos na era digital, ou no Big Data, tempo em que a informação está disponível na “nuvem” (cloudy computing), e o acesso aos dados, aos fatos e às notícias é liberado às crianças, principalmente por meio de celulares, tablets e computadores. Pesquisas na internet são cada vez mais frequentes e até estimuladas pelos educadores. O uso de produtos da mídia como material pedagógico em sala de aula é incentivado e é tendência nos círculos da educação e da comunicação.

É preciso lembrar que, nos dias que correm, o espaço público é abastecido de maneira mais complexa e por agentes sociais não iniciados no jornalismo, que não são profissionais da notícia, mas que com o acesso às redes disponibilizam o relato do que acontece no mundo com possibilidade de recepção global. Apesar disso, continua sendo verdadeira a tese de que aqueles fatos selecionados pela mídia tradicional e constitutivos dos meios jornalísticos ganham relevância e visibilidade que lhes asseguram uma credibilidade ímpar e a presença na agenda pública.

O mero uso de material midiático à guisa de informação sobre os fatos do mundo apenas desloca, desterritorializa o local do consumo, apequena o papel da escola no processo de formação do aluno enquanto consumidor de notícia. Assim, quando a produção jornalística pesquisada na internet é levada à escola, espera-se muito mais do que simplesmente a ciência de seu conteúdo; espera-se do educador que ele provoque uma reflexão sobre os processos de elaboração da notícia, uma discussão sobre seus critérios, uma avaliação da forma jornalística de atribuir valor aos fatos e uma ponderação crítica sobre outras maneiras de valorar a realidade, definindo, assim, a pauta.

Uma educação para os meios de comunicação

Nesse sentido, caberia também à escola discutir os efeitos sociais desse trabalho jornalístico de definição do que é ou não notícia. Afinal de contas, um fato preterido pelos meios de comunicação acaba tendo existência social restrita àqueles que com ele se relacionaram. A presença desse fato enquanto notícia nos meios de comunicação confere-lhe um conhecimento e uma discutibilidade que abrangem potencialmente todo o espaço público. Portanto, deve a escola permitir ao aluno dispor de instrumentos para refletir a respeito dos critérios pelos quais um fato vira notícia e outro não. Essa discussão permite um consumo consciente, crítico, reflexivo da produção jornalística diária.

A relação íntima dos meios de comunicação com o espaço público se dá por intermédio de um agendamento temático e é também conhecida pelos teóricos da comunicação como agenda setting. O que é agenda setting? De acordo com Maxwell McCombs e Donald Shaw ([1972] 2000), é a hipótese segundo a qual a agenda dos meios de comunicação impõe os temas de discussão social. Em outras palavras, as pessoas, em comunicações interpessoais, discutem prioritariamente sobre os assuntos abordados pelos meios de comunicação. Essa hipótese é intuitiva e de fácil compreensão. Os exemplos poderiam multiplicar-se ao infinito.

Ao relacionar temas para compor o produto informativo, os veículos de comunicação determinam o que aconteceu, dando a alguns fatos existência social, mas condenando às trevas, ao desconhecimento social, um número infinitamente maior de assuntos também mediatizáveis. Ora, essa construção da realidade social operada pelos meios por intermédio de seleção e hierarquização arbitrária de eventos tem efeitos: promove discussões sociais encapsuladas na barreira do desconhecimento de temas descartados pela redação dos jornais.

No entanto, essa imposição temática pode ser vista de maneira menos apocalíptica e mais integrada. A realidade social é crescentemente complexa. O mundo especializa-se em velocidade progressiva. A vida em sociedade só é viabilizada em função de mecanismos redutores dessa complexidade. Os meios de comunicação, ao dar forma àquilo que está disperso e latente, oferecem às pessoas um mínimo denominador comum de temas sobre os quais conversar.

Proposta pedagógica

Na elaboração e na gestão de um processo pedagógico, as estratégias são definidas em função de objetivos preestabelecidos. O uso de material informativo de jornal, revista ou mesmo televisão visa a levar para a sala de aula um conjunto de temas que pertencem à agenda pública de discussão social, atribuindo, assim, um fim pedagógico ao efeito agenda setting.

A intersecção de recepção midiática e o processo pedagógico escolar, de acordo com a perspectiva da comunicação, fazem-nos pensar antes de tudo na agenda temática a ser definida. Embora o conteúdo do material pedagógico seja quase um pretexto para a construção e o desenvolvimento das estruturas de conhecimento por parte dos alunos, é inegável que a motivação, sempre associada ao interesse pelo tema e decorrente da gratificação psicológica obtida, é ponto nevrálgico na evolução do aprendizado. No espaço escolar, o aluno relaciona-se com os colegas em função de três tipos de agenda temática: 1) a agenda pessoal de cada um, quase sempre comentada entre os colegas de relação mais estreita e segundo a qual cada um expõe fatos e opiniões que dizem respeito à experiência vivida; 2) a que aparece em reuniões de grupos, via WhatsApp ou redes sociais, e diz respeito à agenda do grupo instituído, que pode ser a turma toda ou grupos ocasionais impostos ou não pelo educador. Os temas desse segundo tipo de agenda são os que mais se aproximam dos programas desenvolvidos pelos professores, de seu discurso, dos livros de referência, das questões de prova, dos horários de aula, das lições de casa etc.; 3) os temas discutidos pelos alunos pertencem à chamada agenda pública da sociedade. Nela, questões de conhecimento público, ou seja, que pertencem a um menu temático compartilhado por toda a sociedade, são objeto de intervenção dos alunos. Compõem esse tipo de agenda temática assuntos políticos (corrupção, eleições, candidatos), econômicos (inflação, moeda, salário), esportivos (resultados de partidas, atuação de jogadores, contratações) etc. Não raro, o que acaba discriminando essas três agendas não é o conteúdo do tema discutido, mas o enfoque dado.

A violência, por exemplo, é um objeto de estudo que pode estar presente nas três agendas temáticas. Um aluno que conta a experiência de um assalto a sua casa, uma questão de prova que envolva o tema ou a própria discussão do fenômeno da violência nos grandes centros urbanos são maneiras distintas de trabalhar a mesma questão.

Consciência crítica

Hoje, há uma tendência a incentivar em sala de aula discussões que envolvam esse terceiro tipo de agenda temática. Imediatamente, o produto informativo oferecido pelos meios de comunicação surge como fonte privilegiada. Visa-se promover um agendamento de temas específicos por meio, por exemplo, da leitura de jornais. Para isso, procura-se oferecer ao aluno um conjunto de referenciais que permitam associações com novas informações recebidas e, assim, despertar o interesse sobre tais assuntos. Se os meios de comunicação impõem a discussão social (agenda setting), procura-se utilizar esse efeito de forma direcionada e combinada ao processo pedagógico em sala de aula. Para comunicadores e pedagogos, esse processo deve permitir ao aluno, por meio de uma recepção dirigida, desenvolver um espírito crítico em relação às mensagens veiculadas, incentivar o contraste com outros referenciais e promover a discussão de opiniões e interpretações.

A obsessão com o material pedagógico pode levar a uma negligência na preparação cuidadosa dos docentes. Nesse sentido, apresentaremos três ideias do senso comum que atrapalham o processo pedagógico: a associação do jornal à realidade; o uso do jornal em sala de aula equiparado ao uso que faz o leitor comum; e o produto informativo como socializador do conhecimento.

O espelho da realidade, o chamado “espírito crítico”, que nasce da capacidade de contrastar, diferenciar e associar novas mensagens a referenciais previamente estruturados, depende, no caso da recepção de informações mediatizadas, de noções sobre o que é o produto informativo. Não é incomum professores do ensino fundamental e médio recomendarem aos alunos a leitura de jornais para que “conheçam a realidade”, “saibam o que está acontecendo no mundo”, “estejam ligados no que ocorre nos lugares”. Essa sugestão, sem algumas advertências paralelas, produz efeitos negativos.

Associar de imediato a informação mediatizada à realidade faz crer numa transparência, ou seja, na correspondência absoluta entre o texto e o fato. Observa-se que essa é a representação do jornal ideal imposta por grande parte do material publicitário sobre os meios. A ilusão de mostrar a vida como ela é tem como principal ponto de apoio a aparência de objetividade das imagens e dos textos jornalísticos. É preciso que o aluno saiba que o periódico é fruto de um conjunto de escolhas e seleções arbitrárias. O texto informativo, como qualquer enunciado, é um processo específico de individualização da linguagem enquanto código de significação. Quando um jornalista redige uma matéria, ele materializa um processo ininterrupto de escolhas que acabam constituindo uma mensagem entre uma infinidade de possibilidades preteridas. Além das escolhas estritamente formais de sintaxe e de léxico, opera-se uma seleção temática.

Quando se fala em imposição temática, em escolha arbitrária, imediatamente se fala em manipulação. A manipulação, no entanto, não está na seleção, que é inevitável em função das limitações de tempo e espaço do produto. Está, sim, no golpe de violência simbólica que procura impor a parte pelo todo, fazer crer que o universo de temas elegidos como midiáticos pela reunião de pauta seja a realidade fenomênica. Trata-se de um tema de ética informativa e cabe uma advertência aos alunos. A imposição de um produto codificado — portanto, em certa medida, ficcional — como sendo a realidade, inacessível para o leitor, é a essência do produto informativo e mediatizado. A ausência aparente do autor jornalista, provocada por uma padronização estilística crescente (manuais de estilo), significa ausência de codificador, de código, de intermediário e, consequentemente, de seleção.

Defesa contra a manipulação

O processo pedagógico deve esclarecer e advertir sobre eventuais efeitos nefastos que a recepção do produto informativo pode produzir, não apenas reforçá-los. O estudo do material informativo deve ser epistemológico, de método (ou seja, nesse caso, relativo ao conhecimento dos processos de comunicação), não temático. Se os objetivos são a discussão e o desenvolvimento do “espírito crítico”, é inútil transformar o aluno em deglutidor hipocondríaco de pílulas informativas. De acordo com algumas pesquisas, o segundo e o terceiro tipos de agenda têm uma limitação quantitativa.

Tanto em universos sociais circunscritos como na sociedade como um todo, o número de temas de discussão não ultrapassa um teto que varia em função das características culturais do grupo. Dessa forma, para que novos assuntos sejam incorporados à agenda de discussão, é necessário que outros sejam, paralelamente, esquecidos. Isso significa que a introdução dirigida de um tema no processo pedagógico corresponde ao desligamento de outro. O grupo regula o congestionamento temático. Daí a inutilidade da saturação na transmissão temática. O uso que o leitor comum faz da informação consumida é quase sempre imediato. É tão perecível quanto a própria notícia. O valor do dólar indicado no jornal tem validade de algumas horas.

Considerações finais

A primeira consideração, referente à parte inicial do texto, é que não existe justiça teórica na afirmação de que as restrições da publicidade infantil tenham origem em um Estado totalitário e que afetam diretamente as liberdades individuais. Pelo contrário, mostramos como o atual modelo do mercado publicitário infringe os direitos individuais e atenta contra o capitalismo.

A segunda consideração é que os defensores do livre mercado e da livre comunicação devem voltar seus esforços para incluir disciplinas sobre os meios de comunicação na sala de aula como instrumento fomentador de consciência. A educação pública de qualidade é a solução liberal mais eficaz para a sociedade enfrentar problemas sem depender da tutela do Estado.

Referências

FREUD, Sigmund. “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade”. In:______. Obras psicológicas lógicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996. V.7.

FRIEDMAN, Milton. Livre para escolher. São Paulo: Record, 2015.

GIANNETTI, Eduardo. Vícios privados, benefícios públicos? A ética na riqueza das nações. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

LOCKE, John. Ensaios sobre o entendimento humano. São Paulo: Martins Fontes, 2012.

McCOMBS, Maxwell E.; SHAW, Donald L. “A função do agendamento dos media”. In: TRAQUINA, Nelson. O poder do jornalismo: análise e textos da teoria do agendamento. Coimbra: Minerva, 2000.

PIAGET, Jean. Da lógica da criança à lógica do adolescente. Porto Alegre: Thompson Pioneira, 1976.

SMITH, Adam. A riqueza das nações. São Paulo: Martins Fontes, 2003. V.1.

STUART MILL, John. A liberdade – utilitarismo. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

 

Notas

[1] Disponível em http:// www.conar.org.br/pdf/conar197.pdf; acesso em: 20 jul. 2015.

[2] Disponível em http://www.abert.org.br/web/index.php/notmenu/item/22657-proibir-publicidade-infantil-e-uma-forma-de-censura-diz-conar; acesso em 20 jul. 2015

[3] Disponível em http:// www.conar.org.br/pdf/conar197.pdf; acesso em: 20 jul. 2015.

[4] Fazemos referência ao mecanismo psicológico segundo o qual as crianças tentam introjetar as qualidades de pessoas ou personagens de que gostam. Ver Freud ([1905] 1996)

[5] Grifo nosso

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