Por Homero Santiago

Finamente, retornam as paixões proporcionadas pelo esporte mais popular do planeta. Para quem ama e acompanha o futebol — esporte de origem bretã que alguns puristas do vernáculo propuseram denominarmos “ludopédio” —, janeiro é momento de acalmar os ânimos, após o fim da temporada, e curtir a encantadora Copinha (a Copa São Paulo de Juniores). Mas chega fevereiro e tudo recomeça com os campeonatos estaduais.

Nem todo mundo gosta de futebol. A maioria é indiferente, e não faltam alguns ranzinzas a condenar a besteira de 22 pessoas (antigamente se dizia “marmanjos”, mas com a ascensão do futebol feminino, convém corrigir) correndo atrás de uma esfera entre quatro linhas dispostas em retângulo. Mas eis um enigma instigante. Ninguém duvida que, rigorosamente, o futebol não serve para nada. Ainda assim, o tal desporto mobiliza as pessoas mundo afora. Até quem não se interessa torce, vibra, vendo um jogo — e isso para nem falar da experiência incrível que é ir a um estádio. Por quê? O que tanto atrai? Acredito ter encontrado uma pista num episódio do último ano.

Em abril de 2021, o projeto de uma “Superliga” causou rebuliço na cúpula do futebol mundial. Alguns times da Europa propuseram organizar uma nova competição substituindo a tradicional “Liga dos Campeões” da Uefa (a federação europeia de futebol). O campeonato seria anual e envolveria 20 clubes; 15, membros da Superliga, com vagas fixas, não precisariam passar por seletivas nem poderiam ser rebaixados; as demais vagas seriam preenchidas por outros times conforme o seu desempenho em campeonatos nacionais.

Fifa, Uefa e federações nacionais dispararam contra o “egoísmo” desses clubes que só pensariam em si mesmos, não no futebol. Movimentando cifras bilionárias em patrocínios e direitos de imagem, a nova competição permitiria aos clubes concentrar os melhores (e mais caros) jogadores do mundo, gerando mais interesse e, consequentemente, mais lucros. Pela mais simplória lógica da seleção natural, a Superliga formaria uma pequena elite que jogaria entre si, ganhando muito, deixando que alguns times “comuns” temporariamente se juntassem a ela. Os de cima nunca perderiam o privilégio, os de baixo jamais entrariam no clube.

É claro que as imprecações de entidades como a Fifa e a Uefa contra a ganância soaram plenas de cinismo, pois são elas que controlam hoje as somas milionárias do futebol mundial. Até aí, tudo normal. Realmente surpreendente foi a reação dos torcedores de alguns dos times que encabeçavam a proposta de uma nova liga. Protestaram e clamaram: “Vergonha!”. Ao fim, foram os responsáveis pelo abandono da ideia. Como dito acima, um enigma: se tudo que um torcedor deseja é ver seu clube por cima, por que esses torcedores recusaram um arranjo que justamente os privilegiaria?

Há muito o futebol é prioritariamente um negócio. Mesmo assim, quando torcedores repreendem seu time do coração, é como se lembrassem com ênfase que o futebol também é mais que puro negócio. Parece haver algo, que querem preservar, que ultrapassa o big business e que se perderia com a Superliga. O que é? Algo do que se chama competitividade, presente em todo esporte, e que no futebol atinge outros níveis e se combina (mesmo que nem sempre) ao divertimento de ocasião, à paixão saudável, à sociabilidade cotidiana.

Além (ou talvez aquém) do negócio e do primor físico e tático, o futebol demonstra ter ainda outra função na vida das pessoas. É assunto que serve para entabular uma conversa no elevador ou na padaria, caçoar de amigos e ser por eles caçoado, vibrar e amaldiçoar em velozes rodopios afetivos; ou então, descompromissadamente, só assistir a uma boa peleja. Para muitos, o futebol é isso. E isso basta. Ainda que alguns se encantem com o esporte europeu e lastimem o nacional por não exibir o mesmo nível técnico, há quem se empolgue mais com um jogo do seu time num reles torneio estadual do que com um certame de gigantes na longínqua Europa.

Para que serve o espetáculo de 22 pessoas correndo atrás de uma bola? O inteligente vê só alienação; o empresário, só lucro — aspecto tanto mais forte hoje, quando clubes brasileiros tentam inovar tornando-se empresas. De outro lado, há torcedores que entendem que o essencial está precisamente naquilo que reverte a lógica da utilidade: algo como o prazer de uma caçada onde a presa (o resultado) importa menos que a própria caça (o jogo). Parece que o que esse esporte tem de mais profundo e o torna tão apaixonante está precisamente nessa inutilidade que o faz irredutível à mercantilização. Nesse sentido, talvez o futebol se inclua entre aquelas coisas inúteis e maravilhosas que, justo por isso, nos são imprescindíveis. O futebol não só diverte como, furando o atazanante utilitarismo do dia a dia, guarda a promessa de uma convivência lúdica e alegre que não exige de nós estar sempre por cima do outro — mesmo quando isso se reduz a 90 minutos vivenciados num gramado demarcado por quatro linhas. Ave, ludopédio!


Homero Santiago
Livre-docente pela Universidade de São Paulo, onde é professor de História da Filosofia Moderna. Possui graduação, mestrado e doutorado em Filosofia pela Universidade de São Paulo.

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