Por Clóvis de Barros Filho
A vida cotidiana é opaca, talvez invisível. Nossas experiências são mediadas por nuvens de embaçamento. No ensimesmado cipoal das divagações preocupadas, o olhar e sua gangue de sentidos patinam no torpor obnubilado. Desta nebulosa opacidade participam a centrífuga dos desejos, o flutuar nauseado das utilidades em cadeia, as opiniões aplaudidas em rebanho, o temor do devir ignorado, as crenças acumuladas sem recuo nem crítica e os hábitos, que se reproduzem na inércia da própria definição.
Tudo parece reforçar desprezo pelo mundo, desatenção crônica e deslocamento recorrente. O esforço dos grandes pensadores sempre foi o de denunciar a opacidade, afastar as nuvens que turvam a percepção, distorcem seus flagrantes e falseiam o real, empobrecendo toda experiência. Resta-nos empenho correlato, para devolver à presença imediata seu caráter original, aos fenômenos a relevância maior e ao mundo percebido seu estatuto mais digno.
Para tanto, urge vitória sobre os vieses arbitrários da vontade bem como frente aos escapes temerosos da imaginação. Reconciliação com o mundo que cobra ajuste pleno com seus tempos e espaços, emancipação do espírito face ao estrabismo das obviedades implícitas que fingem aproximar, mas só afastam.
Abrir-se para o universo – em relação franca e genuína – cobra trocar os programas consagrados de existência pelo respeito encantado ao inédito, virginal e irrepetível. E tão agudo esforço só se revelará compensador pela angústia do desencontro. A fragilidade louca de viver dentro e fora. De estar sem estar. De atravessar a vida breve em quimera fosca de fuga covarde, na fissura rachada do que poderia ter sido.
Toda percepção do mundo é fragmentada. Só um estilhaço da realidade se apresenta aos sentidos. O resultado perceptivo é uma produção genuína do corpo que percebe. Na comissão de frente, os órgãos responsáveis pelos sentidos. Mas estes, por sua vez, vinculados a todas as demais células, articulam a sinfonia do complementar. Por estranho que pareça, o joelho participa da audição, o baço da visão, o rim do tato e o quadríceps de paladar. Olhos, tímpanos, papilas, pontas dos dedos, narinas, nada disto é ilha no interior da integridade corpórea.
Como tudo tem mesmo a ver com tudo, o afetado de alegria não vê o mesmo que veria se triste estivesse. O angustiado ouve diferente do apaziguado. E o amante, este quando apalpa, beija ou abraça, percebe o mundo de um jeito que amado nenhum perceberia.
Mais do que estados de espírito, energias e potências vitais, a percepção se dá em posição. Naquela e não em outra. Posição ocupada no mundo infinito e sem eixos cartesianos. Que permite perspectivas únicas e inexoráveis. Excludentes de todas as outras possíveis. Ao menos naquele instante e lugar.
Os argumentos já jorram para a inferência óbvia: o mundo percebido é um para cada um. E não só. Também é um para cada instante de vida. Exclusividade inédita que nos joga na solidão inapelável, face a qualquer outro e a nós mesmos. Ainda que pudéssemos coincidir no tempo e no espaço com algum outro corpo, ocupando a mesmíssima posição, o mundo nos afetaria singularmente. Afinal, ninguém sente com o corpo do outro. Nem quando dá causa as suas sensações.
Por isto o livro de fotografias registra a particular, incomparável e irrepetível experiência da sua autora. Um convite para a descoberta de sua alma mais profunda, apresentada na interação artística com o mundo.
Desnudar a alma, revelando as próprias angulações, é gesto generoso que insere na humanidade. Descobri-la e tocá-la é movimento prazeroso que nos motiva a fazer o mesmo.
Que cada foto, como todo espelho, mostre o que você não poderia ver sem ela. Descobrir-se como encantado, flagrar-se como alegre, pilhar-se como melancólico na contemplação tranquila do registro artístico.
Ao folhar as páginas, entregue-se. Permita-se. Conceda à cada estilhaço de mundo fotografado a oportunidade de afetar, transformar e deixar sua marca.