Por Homero Santiago

“O amor começa com o olhar; olhamos a pessoa que queremos e ela nos olha.”
Octavio Paz, A dupla chama

Quem vê cara não vê coração. O descompasso entre o ser verdadeiro de uma pessoa e a sua aparência enganosa atravessa a nossa cultura cristã, revelando-se com nitidez na compreensão da experiência amorosa que crava a distância entre o amor sincero e altivo, que pouco dependeria do aspecto físico, e o ímpeto desejoso excitado pelos sentidos; nobre sentimento x instinto quase animal.

É o que encontramos, por exemplo, em alguns textos fundadores do cristianismo reunidos no Novo Testamento. Quando um casal se une, afirma Paulo na primeira epístola aos coríntios, são “dois em uma só carne”, a qual está aprisionada às “coisas do mundo”; em troca, a pessoa que ama apenas a Deus forma “com ele um só espírito”, e daí a superioridade do celibato. Transformado esse amor divino em modelo do afeto humano, é como se o perfeito amor tivesse por condição a separação dos corpos e a união de corações espirituais que nunca se revelam em caras físicas — quem vê um não vê o outro, e na supressão do intervalo insinua-se o pecado da carne. Daí uma epístola de João alertar contra a “concupiscência dos olhos”.

Essa breve digressão ajuda a estimar a importância do poeta Dante Alighieri (1265-1321), e assim homenageá-lo no heptacentenário de sua morte. Se um critério para medir o valor de um artista for ele nos ensinar a sentir de maneira nova o já conhecido, ampliando o leque de nossas experiências, então Dante foi um artista raro, entre outras razões por ter renovado nossa percepção do sentimento amoroso, particularmente em sua obra Vida nova: uma belíssima costura de poemas e trechos em prosa que conta o início de seu célebre amor por Beatriz até a pungente morte prematura da jovem. Um aspecto genial dessa narrativa amorosa é conseguir, ao mesmo tempo, acatar a tensão cristã entre ser e aparência e conduzi-la a um novo patamar; sem dissolvê-la, requalificá-la.

Tudo começa pelo olhar. Dante, pela primeira vez, contempla Beatriz “vestida de nobilíssima cor, humilde e honesta, sanguínea” (utilizo a tradução de Paulo M. Oliveira e Blasio Demétrio). O efeito é imediato e atravessa o corpo daquele que vê: “o espírito da vida, que habita a secretíssima câmara do coração, começou a tremer tão fortemente, que aparecia de modo horrível nas menores pulsações”. Por outro lado, o poeta logo esclarece que o sentimento que dele se apodera é de “nobre virtude” e nunca deixou de guiar-se pelo “fiel conselho da razão”. Eis a altivez do sentimento amoroso tensionada. O amor é virtuoso e aconselhado pela razão ao mesmo tempo que manifesta “no rosto tantas de suas insígnias, que isso não se podia esconder”; ou seja, o nobre afeto não passa ao largo do corpo, aparece nas faces dos amantes (rubor, tremor) e firma-se na e pela visão, faculdade que delicadamente combina o enlace sentimental (quando vemos, nos unimos ao visto) à distância recatada (a união pela visão preserva a separação física). Em suma, os olhos, na Vida nova, são simultaneamente o lugar do amor mais alto e mais intenso; e por isso não espanta a profusão de referências a eles.

O amor é, em primeiro lugar, uma aparência, aquilo que se dá à primeira vista: um rosto. E os mesmos olhos que tremem e brilham são capazes — faculdade notável — de colher a profundeza dos sentimentos: “do coração o rosto mostra a cor”; “cor de amor e piedade no semblante”. A cara, para falar como o ditado, manifesta a verdade do coração. O amor nasce e se espessa na troca de olhares, no olhar e ser olhado, no entreolhar; tanto que a vista insuflada pelo amor, ao voltar-se para as coisas, as consagra pelo sentimento.

Nos olhos leva minha amada Amor,
Porque se faz gentil o que ela mira

E por isso a morte da amada equivale a uma hecatombe, para o poeta e para o mundo, assim descrita por Dante:

A cidade perdeu sua Beatriz,
E o que a respeito possa alguém dizer
Tem a virtude de fazer chorar.

Aspecto fascinante: a transitoriedade dos olhares que se cruzam abre o caminho para o mais alto sentimento amoroso, aquele que transpassa os amantes e os transporta a um novo patamar, a beatitude. O amor é coisa sagrada. Embora mortal, diria nosso Vinicius de Moraes, que seja “infinito enquanto dure.”

Na Vida nova, a chave do segredo está na ideia de que os nomes exprimem a essência das coisas. Beatriz, tanto quanto o italiano Beatrice, correspondem ao latim Beatrix, literalmente aquela que beatifica o mundo. Beatriz é a figuração poética da beatitude, da suprema felicidade, que na tradição cristã se espera da união com Deus. Não por acaso, na Divina comédia, a obra maior de Dante, Beatriz será a sua guia quando ele visita o paraíso. O detalhe genial é que essa beatitude, emblemada em Beatriz, é vista pelo poeta e é visível ao mundo; em suma, é terrena, dá-se em carne e osso.

O amor não é só isso, mas pode ser isso também. Um rosto, um corpo, um sentimento que nos atinge pelos olhos, uma promessa de felicidade que se exprime justamente numa cara. Às vezes, quem vê cara não só vê coração como dá o primeiro passo para a plenitude amorosa mediante uma corporificação da experiência de eternidade e beatitude neste mundo.


Homero Santiago
Livre-docente pela Universidade de São Paulo, onde é professor de História da Filosofia Moderna. Possui graduação, mestrado e doutorado em Filosofia pela Universidade de São Paulo.

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