Por Homero Santiago

“– Mas então por quê?
– Ora, que pergunta! Fiz porque me deu na veneta, meu camarada! Pode-se querer que o traseiro da moleira saiba ortografia? O traseiro da moleira é a razão humana.”

Soarão enigmáticas essas palavras trocadas pelos protagonistas do romance Vida e proeza de Aléxis Zorbás, uma das principais obras do grego Nikos Kazantzákis (1883-1957), a qual se tornou mundialmente conhecida por uma adaptação cinematográfica de 1964 estrelada por Anthony Quinn. O ar de enigma, porém, dissolve-se assim que lemos o instrutivo rodapé da tradução brasileira (editora Grua), que remete a uma anedota grega tradicional: a dona de um moinho senta-se sobre um saco de farinha, deixando marcas ao levantar-se; um professor que passava acredita ler ali uma palavra escrita e ainda sentencia que a grafia está errada.

Tendo em mente essa charmosa estorieta, Kazantzákis propõe a inusitada e saborosa analogia cujo objetivo é enfatizar a fortuidade e, a depender do caso, o absurdo que se infiltram nisso que costumamos prezar como mente sã, bom senso, razoabilidade; em suma, o que denominamos, com uma pretensão enorme e amiúde inconsciente, a razão humana, ou, como preferem alguns, a Razão, grafada com uma majestosa maiúscula.

Sob esse nome, costuma-se indicar o conjunto de princípios e valores que servem de anteparo para a nossa relação com o mundo e para a organização de nossa existência, inclusive a social. É comum acreditarmos que essas “verdades” estão incrustadas na realidade e, por conseguinte, possuem uma consistência perene e inquestionável. Por exemplo, é comum acreditar que, por obra do próprio real, 2 e 2 continuarão para sempre somando 4, à laia de uma verdade absoluta; da mesma forma, cogita-se existirem, em conformidade com a natureza, coisas absolutamente boas e outras absolutamente ruins. Desse ponto de vista, a magnanimidade da razão humana, a qual por isso mesmo nos distingue de outras espécies de animais, adviria de apreender e exprimir essa estruturação geral do mundo.

Mas será tão evidente e certo que é assim ou que deva ser assim? Por que as coisas deveriam agir sempre conforme nós pensamos que devam agir, restringindo-se às expectativas e aos limites do nosso pensamento? Quanto a isso, a anedota referida ao início aloca bem atrás de nossa orelha uma incômoda pulga, que fica caraminholando a suspeita de que o fundo de nossa razão é apenas um aglomerado de ideias, convenções e crenças formadas e reunidas ao acaso e que, em verdade e por si mesmas, nada dizem; o fundo da razão seria um assombroso não fundo, o abismo da não razão, como a palavra inadvertidamente lida, ou melhor, imaginada pelo professor da história. A coisa tanto mais se complica porque, em tese, qualquer esforço de justificar racionalmente a razão está fadado a tombar numa petição de princípio: para provar a razão, devemos usar a razão; logo, pressupomos o que tem de ser provado. A incontornável invalidade do raciocínio torce o rabo da porca e obriga todo aquele que gosta de encher a boca para invocar a Razão a dar um passo atrás e, se for honesto, vacilar.

Seria então o caso de salutarmente abrir mão da razão? Vamos devagar com o andor. Ainda que provavelmente seja impossível uma prova do fundamento último da razão, não precisamos nos condenar ao vale-tudo científico-ético. Em vez de sonhar com a verdade universal, eterna e imutável da Razão, parece mais razoável interrogar-nos, de modo mais pedestre, sobre a razão da razão? Por qual razão ou motivo, apesar de toda a sua fragilidade, nós, humanos, forjamos e mantemos a ideia de razão e dela nos orgulhamos?

A razão não implica necessariamente consensos absolutos; embora esteja sempre tentando, é duvidoso que possa um dia estatuí-los. Mesmo assim, a racionalidade mostra-se uma ideia imprescindível como um conjunto de critérios e a capacidade inventiva, sem os quais nos veríamos despidos de nossa própria humanidade, perigando recair na barbárie e na penúria mais atrozes. É certo que, de uma comunidade à outra, às vezes no interior de um só quarteirão, há considerável variação no que se refere a valores e princípios, à ideia de verdade; é difícil, no entanto, conceber uma existência humana que desconheça quaisquer valores e princípios e a ideia de verdade – sejam morais, religiosos, científicos, tanto faz. O mesmo argumento vale para a razão: o que assim denominamos decerto varia muito, o racional aqui às vezes é absurdo acolá; porém, a ideia mesma de que somos seres racionais e que nos guiamos por certos princípios não varia substancialmente a ponto de desistirmos de manejar critérios minimamente comuns e compartilháveis, de moldarmos um mundo à nossa medida, racionalmente.

Ainda que tudo que julgamos “verdade”, “sentido do mundo”, “razão”, possa ter a consistência de obra do descanso despreocupado de um traseiro, não são coisas a descartar. Podem ser farinha, mas não de qualquer saco, e isso não é pouco. Convém apenas não se deixar levar pela superstição da razão, isto é, crer que isso que é nosso tem raiz no próprio real.


Homero Santiago é doutor em Filosofia e professor livre-docente de História da Filosofia Moderna da Universidade de São Paulo.

Foto capa de Zeta Mponatsou/Unsplash
Foto mídia de Raphael Brasileiro/Unsplash
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