“Os homens não bateram, porque há muito
naquela cidade, ou país, a polícia não precisava
bater para entrar. Não traziam mandados
judiciais, há muito os mandados tinham perdido a
razão de ser. Não havia um estado de direito.
Havia o estado, não o direito.”
Ignácio de Loyola Brandão,
Cadeiras proibidas, 1976.

Texto | HOMERO SANTIAGO

Fazia tempo que o nosso cinema não conhecia um êxito como o de Ainda Estou Aqui, que desde o seu lançamento, em novembro passado, amealhou, cá e fora, milhões de espectadores e inúmeros prêmios; agora está a engajar milhares na campanha por um Oscar. É um feito louvável e inteiramente merecido para um filme que, sem ser uma obra-prima, conseguiu pôr a mestria técnica a serviço de uma história tocante a fim de muito bem contá-la.

As críticas negativas que recebeu, em geral, cobraram um espaço maior para a política e o contexto histórico; no detalhe, variaram conforme a coloração política: o destro queria mais tintas vermelhas sobre Rubens Paiva; o sinistro estava feliz com mais ditadura. Tenho dúvidas. Fiquei plenamente satisfeito com uma película que não é nem panfletária nem obra de arte, só um excelente e oportuníssimo “filme de cinema” (feliz expressão que empresto de Rogério Sganzerla, diretor d’O Bandido da Luz Vermelha), ao qual assisti com prazer e reações sentimentais e cognitivas que presumo se terem reproduzido sobre boa parte dos espectadores. No mínimo — e estou ajuizando por baixo —, o longa serviu para reavivar a memória da ditadura militar de 1964 e de seus efeitos nefastos sobre a vida cotidiana dos brasileiros.

Dessa perspectiva, a que quero salientar aqui, um dos aspectos mais chocantes e instrutivos evidenciados pelo filme é o manejo da disseminação do medo e seu enraizamento nas mentes como instrumento de controle.

Sob uma ditadura, a arbitrariedade (caberia ainda falar da tortura, das brutezas e que tais, mas deixo de lado) se alastra e a todos ameaça, ao acaso, conforme a mais inexplicável e imprevisível contingência, a qual distribui tanto a imunidade e às vezes o lucro fácil quanto a danação e, por má ventura, a morte vil. Funciona como uma roleta: aleatoriamente, qualquer um pode ser acusado de qualquer coisa a qualquer momento. Tal qual o cidadão Rubens Beyrodt Paiva, engenheiro civil, deputado federal, esposo e pai, é preso do nada e por nada, sem acusação nem formalidades. E some. Vive-se então num lusco-fusco aterrorizante em que todos são suspeitos e culpados até prova em contrário. Eis o efeito mais puro de um regime ditatorial que vive a medusar os cidadãos: você pode dormir tranquilo (impoluto “cidadão de bem”, se quiserem) e acordar “elemento” (no sentido policial do termo) pendurado no pau de arara, sem saber de que é acusado nem ter direito a defesa. O sentimento de insegurança é terrível. Em vão os familiares te buscarão, os advogados sequer saberão do que te defender, pois não há acusações; quiçá envolvam teus próximos, familiares e amigos; teu corpo, se vier a padecer numa sessão de brutezas, desaparecerá. Tudo em segredo.

Ora, há milênios a publicidade das leis tornou-se um elemento fundamental da concepção grega de democracia, ao permitir ao acusado o básico conhecimento das eventuais acusações. Sem isso, qual a essência do direito senão servir de instrumento de poder à disposição dos poderosos? Pois então. Como sabe quem assistiu a Ainda Estou Aqui e não se fez de cego ou bobo interessado, em nossa ditadura não importava o que podia tornar-se crime conforme o bel-prazer dos mandachuvas (“generais de dez estrelas”, como os que um dia premonitoriamente cantou Renato Russo, em Faroeste Caboclo, que mandam e arrebentam enquanto ficam atrás das mesas “com o cu na mão”) e de seus mastins (baixos oficiais, delegados, praças, o guarda da esquina, dedos-duros).

O mecanismo do segredo era tão central que chegou a ganhar forma institucional acabada. Sob Garrastazu Médici, o decreto no 69.534, de 11 de novembro de 1971, inventou esta coisa surrealmente macabra que eram os decretos secretos, de que só se publicavam o número e a ementa, sem mais notícias ao público que deveria, no entanto, respeitá-los. Eis a letra oficial:

Art. 7º O Presidente da República poderá classificar como secreto ou reservado os decretos de conhecimento restrito, que disponham sobre matéria de interesse da Segurança Nacional.
[…]
§ 2º O órgão de que trata o parágrafo anterior enviará ao Departamento de Imprensa Nacional, para publicação em Diário Oficial, redigida de modo a não quebrar o sigilo, somente a ementa do decreto, com o respectivo número.

À época, o líder da oposição no Congresso até comentou: “não sei como se obedecerá a uma lei, a um decreto, a um regulamento que todos devem ignorar”. Correto, mas não absolutamente. O que se pretendia talvez fosse menos legislar do que propagar a insegurança e o medo, graças ao sentimento de que qualquer um podia ter o destino de Rubens Paiva. Numa palavra, aterrorizar para comandar. O controle do poder do segredo revelava-se por inteiro um dos fundamentais segredos do poder.


Homero Santiago é doutor em Filosofia e professor livre-docente de História da Filosofia Moderna da Universidade de São Paulo.

Diagramação | RONALDO CAMPOS

Foto capa do filme “Ainda Estou Aqui”, direção Walter Salles | Reprodução (Selton Mello, Fernanda Torres, Guilherme Silveira, Bárbara Luz).
Foto mídia | Arquivo Central/AtoM/UnB | Estudantes da UnB são detidos dentro do campus em agosto de 1968, na ditadura militar.
Foto mídia | Memorial da Democracia/Polícia reprime estudantes em greve durante a invasão da Universidade de Brasília (UnB) em junho de 1977.
Foto (silêncio) de Sander Sammy na Unsplash.

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