Por Homero Santiago
Em 1989, Francis Fukuyama lançou uma interrogação ousada: teríamos alcançado o fim da história? (“The end of History?”, The National Interest). A sua resposta afirmativa ganhou ares proféticos graças à coincidência de surgir poucos meses antes da queda do muro de Berlim, em novembro daquele ano, que se tornou um marco do fim da Guerra Fria e a abertura de um novo momento da história mundial.
Fukuyama retomava uma tese atribuída a Hegel: as ideias movem a história e o desenvolvimento ideológico da humanidade em algum momento termina quando não há mais possibilidade de inovações e transformações estruturais. Hegel teria reconhecido esse “fim” na Revolução Francesa; Fukuyama, em troca, identifica o “fim da história” na vitória do modelo de democracia liberal capitalista sobre o comunismo, processo que, acreditava, estava se consumando na década de 1980.
O argumento, grosso modo, é o seguinte: os ideais de democracia liberal e economia de mercado haviam sobrepujado seu grande inimigo (o comunismo) e constituído um “notável consenso”, de forma tal que não haveria mais possibilidade de revolução ideológica, não surgiria mais alternativa viável à organização da vida preconizada pelo mundo ocidental. Isso, por óbvio, não implicava dizer que não mais ocorreriam greves, contestações, disputas eleitorais, golpes de Estado etc., mas somente afirmar que nenhum desses fatos acidentais afetaria a essência do sistema; toda contenda razoável seria pelo aperfeiçoamento do modelo existente, não por sua transformação. Em geral, a humanidade seguiria uma mesma tendência rumo a um mesmo fim. Nem sequer a explosão ocasional de matanças e guerras desmentiria a análise, já que tais eventos, quando muito, não passariam de índices da permanência de certas regiões do globo num estágio atrasado do desenvolvimento histórico-ideológico geral.
A montagem teórica de Fukuyama logo mostrou problemas, a começar pelo 11 de Setembro, a série de conflitos que o antecedeu e a “guerra ao terror” que o sucedeu. Ainda assim, o esquema pôde ser preservado com certos ajustes que até confirmariam o diagnóstico original: o terrorismo não era portador de nenhuma seriamente concorrente do ideário democrático-liberal. Mesmo quando os EUA e aliados se lançavam em aventuras bélicas, estava isso mais próximo de um papel de polícia mundial responsável pela manutenção da ordem que de qualquer coisa parecida com a guerra contra o nazismo ou a luta contra o comunismo. Em suma, o varejo da violência podia correr solto no globo sem afetar a lógica do consenso e do sistema globais.
Esse quadro me parece decisivo para entender por que a atual guerra em curso na Ucrânia mobiliza a opinião mundial, inclusive em substituição à pandemia que há dois anos nos atormenta. Muitos veem nessa comoção perante a guerra o perverso efeito de “hipocrisia” e “cinismo” de governos e pessoas comuns. No fundo, argumentam, é mais um conflito ao lado de outros, bem piores no que se refere a vítimas e deslocamentos populacionais. Pudera! Em algum momento até vi um repórter televisivo ventilar que o mais terrível dessa guerra é que os ucranianos que se refugiavam na Polônia eram “pessoas iguais a nós”, quer dizer, nada tinham a ver com o figurino típico do refugiado africano ou asiático a que fomos habituados (desnecessário frisar que os de feições não ucranianas encontraram dificuldades abomináveis para entrar em solo da Comunidade Europeia).
Embora esse ajuizamento não seja falso, o que ele tem de verdade não permite reduzir a importância da guerra a uma explicação psicológica — só um ingênuo espera mais que hipocrisia e malquerença num ambiente beligerante. Por isso gostaria de salientar um aspecto histórico e político que me parece bem mais relevante.
A partir do quadro de Fukuyama — sem tomá-lo como factualmente verdadeiro, só como verdadeira expressão de certo ponto de vista —, a comoção com a guerra explica-se também por algumas peculiaridades: um conflito entre Estados e exércitos regulares em solo europeu (diferente das guerras na ex-Iugoslávia), irredutível a extremismos religiosos (nem Al-Qaeda, nem Estado Islâmico, nem Afeganistão), envolvendo potências nucleares (Otan e Rússia). Nada, pois, classificável como insignificante desajuste na ordem global que em 1989 Fukuyama classificara como o fim último do desenvolvimento histórico humano. Pelo contrário, todo dia assistimos à crueza de uma guerra quase clássica no que se refere a sua essência política (um antenado talvez dissesse: uma guerra vintage), que traz à mente a célebre definição dada há dois séculos por Clausewitz: “a guerra é somente a continuação da política por outros meios”.
Ora, basta isso para que o conflito, sem apelo ao psicologismo, seja historicamente assustador. Para todos nós. Num futuro próximo, talvez a guerra na Ucrânia se torne o marco de uma nova era, que matou antigas esperanças sem nada prometer de bom para o futuro. Na teoria e na prática, é o definitivo fim do fim da história.
Homero Santiago
Livre-docente pela Universidade de São Paulo, onde é professor de História da Filosofia Moderna. Possui graduação, mestrado e doutorado em Filosofia pela Universidade de São Paulo.