Texto | HOMERO SANTIAGO

Ao ler a notícia, fui de imediato atacado pelo descrédito: “Caixão com corpo cai de carro funerário e atrapalha trânsito em SP”. Logo imaginei uma pegadinha bolada por um fã de Chico Buarque que quisera gozar os leitores outorgando visos de realidade aos vigorosos versos de Construção:

E se acabou no chão feito um pacote flácido
Agonizou no meio do passeio público
Morreu na contramão, atrapalhando o tráfego

Fosse o Dia da Mentira, o assunto estaria resolvido. Mas não. O 1o de abril já ficara para trás e, entrados em setembro do ano passado, estávamos no décimo dia; o ocorrido era da véspera. Na verdade, só fui dar fé ao lido quando, seguindo um link presente na notícia, acabei num vídeo. Por sorte (ou azar, dirão muitos) hoje em dia há um videozinho para quase tudo que acontece; aliás, se acontece de acontecer e não houver um registro, fílmico ou ao menos fotográfico, o acontecimento periga desfazer-se da consistência de fato acontecido, descaindo no limbo das coisas opacamente reais que nunca alçaram o zênite da virtualidade internética. Pois as imagens me permitiram ver que efetivamente o “pacote flácido” havia perturbado o fluxo de uma grande avenida da cidade de Osasco, na Grande São Paulo. Sem lorota.

Os veículos precisavam se desviar tanto do caixão quanto da multidão de observadores; as coroas, cuidadosamente preparadas para uma tocante cerimônia fúnebre, viraram salada sobre o cinza asfáltico; o que noutra ocasião seria poesia (as flores furando o asfalto) ali era só maçaroca informe. Como a vida, também a morte prega peças! Quem responderia por aquele espetáculo tragicômico? Em princípio, indubitavelmente inocente era só o morto estatelado.

Tendo em conta que no momento do incidente o corpo andava de rabecão, presume-se que o tivessem preparado, com maquiagem e vestimentas adequadas, para a ocasião da última vista do raio de sol, quando choros e despedidas sinceras lhe augurariam um descanso repousante naquela paz das pálpebras definitivamente fechadas. Mas, porém, entretanto… aquilo! Conforme li, a funerária responsável pelo traslado comunicou “seu mais profundo pesar” pelo ocorrido, sem deixar de apregoar, como toda empresa pega em delito, que “preza pela excelência”. A coisa certamente se devia a “falha humana”, as travas talvez não tivessem sido bem armadas ou, pior — aí entrou a trabalhar a minha imaginação —, foram desarmadas. Foi então que me solidarizei com o defunto. Ainda terminariam jogando sobre ele a culpa da barafunda. Antecipei mentalmente uma manchete ao estilo do finado Notícias Populares: “Defunto fujão! Não queria dormir pela eternidade e desatarraxou o féretro, driblando o destino”.

Por que tanta confusão? Certa vez um filósofo disse algo assim: ninguém sabe o que pode um corpo. Pois eis que um cadáver que repousa onde não devia é capaz de abalar a normalidade, atrapalhando o público e o tráfego. Tal como no sofisticado poema que é Construção, uma complexa trama de ordenados intercâmbios de palavras proparoxítonas culmina em desordens semânticas capazes de exprimir de maneira tão profunda quanto econômica a realidade bruta (“Amou daquela vez como se fosse máquina /Beijou sua mulher como se fosse lógico”), assim mesmo aquele corpo fora do lugar e indevidamente caído no chão corporificava a desconstrução do nosso mundo ordinário.

O termo “cosmos” deriva diretamente da língua grega. O dado curioso é que, antes de significar “mundo” ou “cosmos”, o termo grego kósmos tinha o sentido básico de ordem. Assim, por exemplo, se podia dizer de uma falange que era kosmíos ou eukosmos, ou seja, que avançava “em ordem” ou “com boa ordem”. Exprimia isso uma convicção profunda do pensamento grego antigo, que se desdobra até cristalizar a ideia de que o mundo ou o cosmos é uma realidade fundamentalmente ordenada.

Nem precisamos subir a essas alturas para reconhecer que para nós, isto é, para a nossa experiência, a ordem é um dado fundamental, tanto que o mundo sem ordem deixa de ser mundo e passa a ser experimentando como um caos. A ordenação que divide as coisas “boas” e as “más”, as “ordenações políticas”, a “ordem constituída” e as “desordens populares”, as “forças da ordem”, e por aí vai. O desejo de ordem e o horror à desordem estão em nossa vida e subjazem o nosso universo. Que “desordem infernal”, diz o genitor que entra no quarto do filho, contrapondo a isso certa concepção de ordem superior, sem a qual a expressão queixosa nem teria sentido. É um índice mínimo, mas suficiente: em definitivo, queremos e amamos a ordem, as hierarquias e, aprisionados a essa exigência, só muito amedrontados fazemos a experiência da desordem.

Dito isso, talvez se compreenda por que aquele “pacote flácido” numa avenida osasquense foi tão inaudito, inacreditável, terrível. Ao mexer com coisas tão primordiais quanto a vida e a morte, e bagunçar o lugar de cada uma no cosmos e no passeio público, o episódio incorporava a assustadora possibilidade de uma caótica desordem das coisas, uma grande bagunça cósmica. Que medo!


Homero Santiago é doutor em Filosofia e professor livre-docente de História da Filosofia Moderna da Universidade de São Paulo.

Diagramação | RONALDO CAMPOS
Foto capa: The Good Funeral Guide/Unsplash
Foto mídia: de Pierry Oliveira na Unsplash

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