Por Carlos Netto
O que a arte revela sobre o homem como ser histórico, social e cultural? O que o homem revela de si através da arte? Que reflexões o eu criador, através da obra artística, pode estimular na vivência do público? A pergunta já apresenta a intrínseca relação entre a obra e seu autor. Vai além, alcançando que tem contato com ela em sua capacidade interpretativa sobre si mesmo. A arte não surge do vazio ou do nada, como já escreveu Mozart em uma de suas cartas¹. Nenhuma obra de arte pode se tornar grande e universal, transpassando séculos, de forma estranha ao seu autor e a quem se relaciona com ela. O artista contribui para a sociedade de um modo muito particular, diante de suas próprias características e vivências, tornando o todo muito maior do que a soma das partes, uma vez que a obra é uma linguagem que une, de forma singular, o autor com intérpretes, ouvintes e o valor social e cultural que a obra adquire na sociedade. Ela toma rumos próprios. A arte incentiva o contato entre diferentes vivências e pode promover a maior consciência de si e do outro, onde a cultura exerce contribuição para o desenvolvimento do potencial humano. A linguagem utilizada pelo artista tem a capacidade de estimular o transcender do hiato entre a sua vivência e a do outro, mesmo distintas que são. Por debaixo da superfície da vida cotidiana, na vivência de ambos, corre um rio onde brotam as fantasias e subjetividade estimuladas pela arte cuja nascente é a vivência de cada um. Na peça musical, por exemplo, o autor se revela na obra. O ouvinte nos significados que extrai dela.
A vivência humana é como uma realidade cultural e histórica. O pensamento do filósofo Wilhelm Dilthey (1833-1911) aproxima o sujeito do objeto, sua criação, como produto da vivencia humana. A busca do homem em se conhecer se estabelece a partir de suas narrativas que constituem o seu agir histórico. Assim, o homem experimenta sua vida e revela, através de sua obra, o seu espaço e tempo histórico. A vivência é a unidade mínima que constitui o sujeito. É a maneira de apreender o mundo em que habita. A expressão da experiência vivida é a conexão entre a vida da qual ela surge e a compreensão sobre ela. A autobiografia é, portanto, publicamente disponível e verificável, a manifestação nas expressões de arte como revelação vida. Entende-se aqui a construção artística como fruto da vivencia e expressão da autobiografia, aquilo que o autor diz sobre si.
Barenboim (2009:61) entende que “na música, notas e vozes diferentes se encontram e estão ligadas umas às outras, num andamento comum ou num contraponto, o que significa exatamente o que diz a palavra – um ponto contra o outro. Ambos distintos. No entanto, mesmo no ato de desafiar umas às outras, as duas vozes encaixam-se perfeitamente, completando-se entre si.” ² Apesar de alcançar indivíduos diferentes entre si, o simbólico e a subjetividade da arte exigem uma gramática, uma sintaxe, um código que seja minimamente comum a todos. A arte implica num ponto de contato. Revelar de forma mais profunda esse contato é aprofundar as motivações do artista e o que é capaz de despertar, do ponto de vista das vivências, no ouvinte diante de suas próprias construções. A obra revela uma parte do autor. Sua motivação vivencial no processo de criação decifra a aparição do ser que é capaz de provocar o ser do ouvinte. Para Dilthey (2000:159), a obra artística:
“não quer dizer absolutamente nada sem o seu autor. Apenas reconhecendo ele é possível estabelecer uma compreensão técnica segura dela. Surge, assim, a relação entre o saber e a ação, um círculo em que a vida se revela em uma profundidade como não é acessível somente a observação, reflexão e teoria.”
Assim como, para Mozart, a composição está acima do instrumento, a obra de arte é mais do que a linguagem utilizada³. Ela é, em sua gênese, expressão da vivência como reveladora da existência humana, do ser em sua identidade, busca e expressão de vida. Tal vivência é histórica, sendo necessária sua compreensão no tempo e espaço. No entanto, ela não se limita ao tempo e espaço histórico da sua criação, pois a transcende a partir da vivência de outros que fazem contato com a obra diante de suas próprias experiências, também lastreadas pelo seu tempo e espaço histórico. A arte é reveladora do tempo e espaço de sua autoria, mas a transcende pelo alcance que é capaz de provocar em futuras gerações. Ali, entre criador, obra e ouvinte, a vida se revela no exercício da vivência de ambos. E a história se faz. Dilthey é reconhecido pela ênfase na compreensão da historicidade da existência, valorizando a arte diante de sua dimensão cognitiva, afetiva e volitiva que é capaz de revelar (Ramos, 2000).
Por sua vez, a arte musical seria morta sem a condição de se fixar como memória do ponto de vista meramente instrumental. Há códigos de linguagem (notas, partituras, etc..) e instrumentos (fonogramas, arquivos digitais, etc..) que tornam isso possível. De nada adiantaria, no entanto, todo esse instrumental sem a ação humana presente na representação da música e no seu significado nutrido pela vivência de cada um (Dilthey, 2010). A criação artística que é produzida na interioridade humana, revivificada pelo receptor na sua própria experiência ao fazer contato com a obra, faz da arte campo de possibilidades de auto compreensão. Conecta pessoas, assim como o passado e o presente, progredindo no tempo histórico de cada ouvinte, com suas características políticas, sociais e culturais. Isso porque o problema da busca e compreensão de si mesmo, através dos seus atos e manifestações, conforme presente nas obras artísticas, é oportunidade para, segundo Dilthey (2000:121):
“uma cooperação de vivências, compreensão do outro, estímulo histórico das comunidades enquanto sujeitos do seu agir ao longo do tempo, onde desse espírito, baseado nas vivências e suas ações, emerge o saber do mundo espiritual.”
A obra de arte é uma necessidade vital na vida humana, seja diante da necessidade de expressão do artista, seja na necessidade que tem o receptor de sentir (Dilthey, 1956). Ambos, artista e receptor, possuem uma necessidade interna, distinta entre eles, diante das suas próprias singularidades, mas que podem ser descritas e constituem o caráter universal da obra de arte. A arte vem ao encontro do indivíduo como um estado próprio ao mundo humano, promovido pela capacidade de criação do artista lastreada pela sua técnica e vivência carregada de subjetividade e significados. Cria conexões entre seres distintos. Nos deparamos, segundo Dilthey (2010:89):
“com concernências vitais, tomadas de posição, comportamentos, com criações relativas às coisas e aos homens e com o sofrimento produzido por eles…a concernência vital, seja ela duradoura ou não, transforma esses homens e os objetos ampliando a existência, elevando as forças ou, então, por outro lado, restringindo o campo de jogo da existência, exercendo pressão sobre o indivíduo e diminuindo sua força.”
O resultado do contato da arte com a interioridade é gestado no terreno da vivência pessoal, produzindo efeitos na forma como o sujeito se descreve a partir dela. Para Giusso (1940:10), segundo o pensamento de Dilthey, “o artista é acima de tudo um visionário que se destaca pela intensidade e beleza das imagens perceptivas, sua multiplicidade criativa e seu interesse pela vida…é o caráter pessoal do artista que lhe dá sentido para o público, não o mero artifício de seu talento. Ao olhar Mozart, não há razão para o exercício do seu sentir estar separada da sua vontade de representar a vida.” Mozart é, portanto, muito mais do que um nome ou artefato cultural. Sua obra expressa sua vida que revela significados profundos sobre os desafios do viver humano. É preciso ir além do nome. Além da obra ser revelação da autobiografia do autor ela alcança, na vida de outros, o despertar da autobiografia do ouvinte. Há vivência em que cria e que usufruiu da criação. Para Dilthey (2018:127):
“Mozart constrói suas situações vividas, nas óperas que compõe, e o caráter das ações de maneira musical. O caráter se manifesta em sua situação emocional interior. Por meio do recitativo entra em relação com outros caracteres e nesta relação se eleva a ação da vida vivencial por intermédio das formas do discurso musical.”
O caráter daquilo que Mozart constrói na composição não está desvinculado, segundo Dilthey, da sua própria vida. A oportunidade para o pesquisador, que busca entender Mozart e o seu tempo histórico, está na compreensão daquilo que ele diz, em suas cartas, sobre si mesmo, sua autobiografia, e como isso se expressa na sua obra, resultado de sua vivência e compreensão do mundo que habita. Mozart, segundo Dilthey (2018:131):
“é o maior gênio dramático do século XVIII. Se baseia em uma construção que dá a cada coisa, cada situação, cada homem, toda sua objetividade…através de suas cartas se expressa o dinamismo de seu modo de manifestar-se. Recorre à construção musical de cada vivência. A música é sua linguagem…utiliza a música para expressar ao mundo o que ele é.”
Faz isso em especial no enredo de suas óperas que tiveram papel determinante no olhar sobre o mundo de sua época, unindo notas e palavras, música e poesia. Mozart foi buscar nas óperas, por exemplo, formas mais amplas de expressar suas vivências. Ali dá voz aos servos e sua compreensão da sociedade do seu tempo.
Do ponto de vista metodológico, o fundamento daquilo que Dilthey (2010) definirá como Ciências do Espírito, parte fundamental da sua obra, é baseado na analogia com o processo gerativo da arte: a expressão presente nas fundações de todo o mundo espiritual é, na verdade, modelada na vivência, como arte figurativa e representativa de si, e transfigurada no outro, naquilo que nele gera como consciência de si mesmo. Giusso (1940:87) vê a arte, nos trabalhos de Dilthey, “como vida objetiva e elevada à expressão. A arte não é separada da vida por nenhum hiato, mas é largamente expressa nas paixões, nas tribulações, alegrias na história íntima do artista…A arte é, portanto, um conhecimento do mundo humano, uma representação fantástica do ethos coletivo, significação da história e seu movimento volátil.” O pensamento de Wilhelm Dilthey se ocupa dessa vivência (“Erlebnis”) singular, onde os indivíduos são agentes de construção da história e atribuem significados para si. Dilthey defende a compreensão de que o homem seja a história e não tenha simplesmente a história (Heinemann, 2014). O ser aponta para ideia da vivência e aquilo que dela deriva como matéria-prima da construção da história. A história não existe sem o agir humano que se manifesta a partir da sua compreensão de si e do mundo onde habita. Para Matamoro (2018:11), “o significado objetivo dos atos de cada um – eu, você, Dilthey – está na história, sendo a história. No entanto, a experiência histórica de cada um não é a mesma, carecendo de objetividade a partir do relato de cada um.” O relato é matéria-prima do pesquisador, onde produção e narrativa se conjugam com referencial de análise.
A vida está intrinsecamente ligada ao produzir história e ter consciência disso. São determinantes na dinâmica dos processos históricos as manifestações da vida (“Leben”), vivência (“Erlebnis”) e expressão (“Ausdruck”). Isso só acontece na condição humana. Tais determinantes são compreendidos pelo modelo analítico-descritivo que propõe a visão das Ciências do Espírito, baseada na singularidade do indivíduo diante da diversidade humana, frente às Ciências Naturais que produzem visões mais generalistas e que se reproduzem de forma mais constante, no método de comprovação científica em suas hipóteses. Ou seja, o fenômeno se repete tantas vezes quanto for testado em um laboratório, por exemplo. O homem, por sua vez, se distingue dos estudos dos objetos e da natureza, sendo impossível aplicar a categorias diferentes a mesma estrutura metodológica, conforme pregada pelo Positivismo, questionada por Dilthey. Tal distinção entre Ciências da Natureza e do Espírito é fundamental na compreensão do pensamento de Dilthey sobre a dimensão humana na construção histórica a partir das narrativas que é capaz de realizar.
O fato de Dilthey dedicar ênfase às Ciências do Espírito, segundo Heinemann (2014:251), “de maneira alguma demonstra desdém pelo pensamento científico-natural.” Ao fazer a distinção entre ambas, Dilthey propõe que sem o caráter de entendimento das disciplinas Humanas, ou das Ciências do Espírito, não se poderia revelar o aspecto mais amplo da vida como fio condutor da compreensão humana. Há uma hermenêutica própria revelada na vivência de cada um. Ou seja, o homem é a sua própria hermenêutica. Isso torna as Ciências do Espírito mais complexas em comparação aos preceitos das Ciências da Natureza. Para Figueiredo (2007:144), “Dilthey define as Ciências Naturais como Ciências Explicativas…na ocorrência de eventos materiais cumpre controlar e, parcialmente, anular a subjetividade. As Ciências Humanas são Ciências do Espírito: sua meta não é a explicação, mas a compreensão dos seus objetos.” O caráter descritivo do sujeito sobre si mesmo merece especial atenção pelo estado de consciência ali presente.
Dilthey é um dos expoentes da transição da filosofia dos séculos XIX e XX, onde sua obra “Introdução às Ciências do Espírito”, de 1893, mostra a necessidade de fundamentar o conhecimento científico e do ser humano nessas inter-relações sociais dos campos do saber humano. Ou ainda, o cuidar metodológico entre as Ciências da Natureza e do Espírito. Ele considera que a ciência se desenvolveu separando a vida do saber, a partir de um empirismo estéril sem a devida atenção ao humano (Dilthey, 1956). A partir desse princípio, Cohen (1979) destaca três características relevantes do pensamento de Dilthey. A primeira é a visão das Ciências do Espírito voltada para o mundo histórico, criado pelos seres humanos em suas ações singulares, diante do mundo natural independente ou externos aos seres humanos. A arte é expressão da singularidade humana. Tem na sua interioridade a origem que a projeta ao mundo externo. Representa sua vivência única do eu para o tu, conectando ambos, mesmo que distintos entre si.
A segunda característica é a explicação dos fenômenos naturais, pelas Ciências da Natureza, a partir dos fatores externos, enquanto as Ciências do Espírito são internas ao ser humano em sua compreensão dos fenômenos humanos originados da vivência. Não se explica o resultado vivencial que impulsiona a construção da obra musical, por exemplo, com os mesmos métodos como se analisa os fenômenos da natureza. Cabe compreender tal dimensão na construção do conhecimento, pois trata-se de fenômeno único e original.
A terceira característica do pensamento de Dilthey, identificada por Cohen (1979), entende o estudo segmentado e atomístico da natureza, enquanto as Ciências do Espírito possuem apreensão mais integradora das disciplinas. Nesse sentido, Dilthey entende História e Psicologia como disciplinas complementares na compreensão do homem. Tal visão parte da crítica que Dilthey (1956) elaborou dos diálogos com duas escolas relevantes na teoria do conhecimento em seu tempo: a positivista e a hegeliana. No primeiro caso Dilthey criticou a ausência de diferenciação na observação dos fenômenos da natureza e as criações do espírito humano – história, arte e religião. Mostra então a necessidade de separação dos campos da natureza e do espírito.
Já em relação ao pensamento de Hegel, apesar da grande contribuição dos estudos hegelianas em sua obra, Dilthey entende que há especulações abstratas separadas da vida em sua complexidade e singularidade. Ou seja, a vida e história são explicadas mediante categorias do pensamento muito generalistas, abrindo mão de especificidades fundamentais na compreensão da produção humana. O fato, para Dilthey (2010), é que a vida não pode ser definida completamente por categorias do pensamento, sendo bem mais ampla e complexa. É preciso entender que a história se desenvolve na singularidade de cada ator, cada indivíduo e na descrição que faz, através dos seus atos e narrativas, da sua vivência. O relato autobiográfico é o objeto angular de trabalho do pesquisador. A individualidade singular presente na biografia se auto-identifica com a imagem que faz para si do mundo, construindo uma visão do mundo e do seu tempo histórico além das teorias generalistas. Segundo Dilthey (1956:32):
“na relação com o meio, a vida própria desfralda-se, recebendo e reagindo…o mundo está sempre presente para nós, sob nosso alcance. Mas porque toda esta engrenagem de percepção, pensamento e ação é apenas sustentada pela nossa existência individual no impulso e na existência, tudo se encontra sob tal referência. Aqui está a mola ou a agitação do relógio da nossa vida. Sem ela, tudo pararia.”
A partir da forma como a vida, diante da vivência pessoal, se constitui frente à ação, entende-se que a arte é, na visão de Dilthey (1956:46), uma das mais potentes expressões da visão de mundo e da própria vida. Segundo ele:
“a arte, face às visões da vida e do mundo, é de todas as formas a mais neutra em as trazer à expressão humana…antes de mais nada, a arte expressa diretamente a vida, no canto, de um modo poético e musical. E, claro está, intuitivamente em simples objetivação da vida interior na mais simples linguagem das imagens da nossa vida, da nossa sucessão de sonhos, etc.”
Aquilo que a fantasia humana é capaz de comunicar sobre a vida se mostra potencializada através das manifestações artísticas. Expressa seu caráter de vivência humana naquilo que Dilthey define como mais natural e com menos filtros, pela forma como emerge do espírito, através das artes. Diferencia-se, em sua linguagem, das manifestações filosóficas e religiosas com outras características de construção. “Quando o homem se entrega aos sonhos mais profundos, manifestos na arte musical, na fantasia de um amor correspondido ou não, formam-se nela os rasgos energéticos singulares de um ideal de vida”, entende Dilthey (1956:47). A fantasia do artista vê algo que simboliza a realidade, pois aí reside a base daquilo que ele pensa, contempla e sonha. Ele interpreta o mundo através de sua arte, construindo significados e sentidos. É o ser interior que se manifesta no exterior, criando nexos entre si mesmo e o mundo, onde o apreendemos na forma de símbolos, como expresso nas artes, e, de acordo com a estrutura própria do sujeito, pela forma como domina a linguagem para sua construção. Realiza isso utilizando diferentes linguagens, de acordo com a sua forma de expressão escolhida. A arte e a cultura, como produção humana, formam um sistema de valores de existência, no qual, para Dilthey (1956), “a pessoa encontra sua satisfação como expressão da vitalidade humana.” Vitalidade presente na expressão do compositor, como na sensibilidade do ouvinte. Ambos elementos são originados da vivência humana, tornando uma determinada obra universal pelo significado presente na vida coletiva constituída na leitura singular de cada indivíduo. É justamente essa capacidade que permite a obra ir além do seu tempo de criação. Há um caráter de universalidade nas vivências que dá vitalidade à obra de arte. Há um espírito objetivo que insere a obra em uma cultura que acolhe sua expressão. Trata-se de acolhimento promovido pelos sentidos que o artista imprime ao que realiza, sendo entendidas à luz de uma história, uma cultura, de uma linguagem e dentro de um sistema de interação que favorece o acesso ao que representa para cada indivíduo e, consequentemente, no nível social. A obra estará à mercê de uma séria de associações interpretativas que a mantém viva e universal.
Heinemann (2014:251), ao analisar o pensamento de Dilthey, entende que o filósofo alemão trouxe importante contribuição ao pensar “à consciência que o artista tem de si mesmo, seus motivos íntimos, na constituição de uma cultura e, deste modo, fortalecer, nesse movimento cultural, o esclarecimento dos seus fins, sua energia e vontade…onde só a história pode dizer ao homem o que ele é.” A cultura está lastreada na busca do homem pela expressão e consciência de si, pelo ser na história. Revela o homem e eleva sua consciência sobre a própria vida. Exercita e estimula o seu campo de interpretação. Nesse sentido, o desenvolvimento do pensamento de Dilthey destaca o papel da arte, até pelo caráter que marca a identidade do autor como agente histórico. Ele a define como singular (Dilthey, 2010), pois nenhuma obra de arte é uma cópia de outra. Isso revela o espírito humano da arte como expressão da ânsia de vivência do artista, dando satisfação a si próprio de uma necessidade de vida sentida e expressa na sua obra, assim como do receptor, agente ativo, que a vivifica em sua própria vivência ao compreender seus próprios sentimentos ou fazer frente ao que a obra lhe provoca (Dilthey, 1961).
A arte é considerada aqui como expressão de uma vivência, designada enquanto tal pelas associações que os indivíduos são capazes de fazer, em função de suas vivências singulares, que se interligam no interior de cada um e provendo sua continuidade histórica. O objeto, a obra artística, não tem vida própria, mas precisa do sujeito e do contato com a sua própria experiência para dar curso ao seu rumo como obra clássica ou universal. Ela só existe a partir do olhar humano. Sem ele a obra seria vazia e sem sentido. É de forma espontânea que a obra surge no artista a partir de imagens da realidade integrada à sua fantasia poética. Na origem da construção artística, o artista fantasia, através da obra de arte, a realidade. Ele não tem poder de absorver o todo da realidade, mas interage com ela através de seus próprios sentimentos. A imagem que chega ao receptor não pode ser desvinculada, por sua vez, da forma como este interpreta a sua própria realidade. Na obra “Poética”, Dilthey (1961:70) trata das mudanças que a arte produz no poeta e no leitor, pois:
“todo o processo anímico adquirido modifica e configura as percepções, representações e estados que estimulam a consciência…no mundo exterior procede o jogo dos estímulos que se projetam na vida interior como sensação, percepção e representação: as variações originadas são experimentadas e apreciadas em múltiplos sentimentos de acordo com o valor para a vida individual.”
A vida humana e a criatividade, presentes nas artes, devem ser entendidas como parte de um processo histórico, sem perder de vista que sua produção está situada em um determinado tempo e espaço, que se interconecta entre os indivíduos que, por sua vez, tem o seu lastro histórico, social e cultural próprio. O indivíduo tem a capacidade de expressar, na sua vivência histórica, a forma de realização do seu tempo e espaço, onde a sua biografia e maneira de pensar sobre si e o outro revelam o seu mundo histórico, social e cultural. Produz arte, vida e história. Apenas o homem tem tal condição: fazer história através da sua ação, produção e construção de valor. A arte é, portanto, produção poderosa na revelação do homem em seu tempo e espaço, permitindo também nexos com a vivência de outros que também dialogarão com o seu tempo e espaços próprios. Para Dilthey (2000:151), “a reflexão de um ser humano sobre si mesmo segue sendo ponto de orientação e fundamento”, onde há um solo comum, social, fundamentada nas manifestações da vida na qual os indivíduos, mesmo diferentes entre si e em tempos distintos, são estimulados a externar suas vivências. A arte, portanto, conecta vivências, inclusive de tempos históricos distintos.
Que possibilidades de diálogos e conexões há entre seres, separados por momentos históricos e culturais distintos? São questões que mostram a relevância dos trabalhos de Dilthey (2010:210), pois:
“a realização suprema da música reside no fato da sua realização como vivência. Aquilo que é psicologicamente efetivo no artista pode ser o passo da música para vivência ou dessa vivência para a música ou as duas coisas de maneira alternante.”
A música é expressão daquilo que um dia ativou o ânimo do compositor, assim como é revivificada nas circunstâncias que a faz significativa para o intérprete ou o ouvinte. Há um significado presente que faz o transcurso atemporal da obra. Ela não reside na obra em si, mas na vivência de sentidos dos seres humanos em diálogo com o seu próprio tempo, mesmo que distantes do tempo histórico de composição da obra. Segundo Dilthey (2010:211):
“o destino, sofrimento e bem-aventuranças estão presentes para o artista antes de tudo em suas melodias. O peso da vida como tal é por demais poderoso para tornar possível à fantasia do voo livre sem qualquer lastro de vida.”
A vida, na leitura que faz dos seus sentimentos, é determinante como lastro da criação artística. “A força inventiva do gênio musical não trabalha no vazio e aquele que sente os estados e impulsos da alma consegue expressar-se de modo imediato e direto. A expressão musical nos diz tudo o que contém um estado da alma”, onde para Dilthey (2000:32) reside relevante espaço de pesquisa na relação indivíduo (eu) – obra – indivíduo (outro) como elaboração da vida. “O eu no tu”, propiciado pelo contato com a obra artística como ponte entre ambos.
A arte expressa o que é a vida, onde o artista exerce sua individuação de si e do mundo histórico humano. Revela consciência histórica de uma época lastreada no fato de pensar a sua vida de forma concreta e contextual. Estrutura isso em sua linguagem. Entre as várias formas de expressar sua singularidade, ao desenvolver suas habilidades artísticas, o sujeito se coloca no mundo como ser vivente, de forma intencional e cognitiva, com sua vida volitiva-sentimental e com as pessoas com quem se relaciona na forma do seu sentir, querer e representar. Ele traz sua interioridade para o mundo exterior, afetando-o e, ao mesmo tempo, sendo afetada pelo retorno que o outro lhe provoca. A música seria vazia, opaca e sem sentido, fosse ela ausente do sentimento nutrido do significado que ela provoca internamente, onde vivência e compreensão se penetram mutuamente, em diálogo com o mundo externo, elaborando algo próprio que torna a obra viva (Dilthey, 2010).
A obra de Wilhelm Dilthey é um exame da capacidade do homem para conhecer-se a si mesmo, a sociedade e a história construída por ele, assim como de construir uma narrativa produtora de arte e o agir na sociedade. Em “Introdução as Ciências do Espírito” (1983), Dilthey mostra, desde os seus primeiros escritos, que entende a arte como reveladora da vida e na compreensão do íntimo do ser humano diante do mundo que o envolve. Sua teoria busca revelar a verdade do sujeito diante da verdade das coisas. É o sujeito que constitui a visão do mundo e de seus objetos. Ele merece atenção, sendo ele o protagonista em sua complexidade humana. A investigação sobre a construção do saber deve estar centrada nele. Não existe, por exemplo, estudo da música sem entender o significado que o indivíduo confere a ela. A base do pensamento de Dilthey tem sua raiz na tradição romântica das Ciências Históricas e Sociais, dentro da forma como concebeu às Ciências Espirituais ou Humanas. A razão de ser dos objetos está fundada no sujeito e não nos próprios objetos. Os objetos revelam, no máximo, o sujeito, mas não como uma propriedade em si e autônoma. Antes, o objeto é originado da vivência do sujeito na sua realidade histórico-cultural, não podendo ser compreendida sem ele.
Antes de avançar mais em sua contribuição metodológica, é importante situar Dilthey na Alemanha do seu tempo, em especial o papel das suas reflexões sobre o quão relevante é entender o indivíduo diante das forças do Estado na compreensão do indivíduo. Na passagem do século XIX para o XX, o II Reich se encontrava em processo de ampliação de suas forças e alcance a tal ponto que o indivíduo se via submetido ao poder crescente do Estado, tendo seu apogeu no “Conservadorismo Revolucionário”, de Bismark, Chanceler alemão. Sua política buscava tornar os alemães comuns mais leais ao trono e ao império, orientada para se contrapor ao crescimento de forças modernistas, sejam elas liberais ou socialistas. A força do Estado se impunha e minimizava a ênfase no indivíduo e sua expressão como agente histórico (Lorenzo, 2005). O Estado crescia como força mobilizadora frente ao poder individual da visão do ser como agente histórico. Nesse contexto, ao contrário da visão centralizadora do Estado, Dilthey afirma o poder do indivíduo na retomada do seu valor próprio, sua capacidade de construir sua ação como ator social relevante. O pensamento proposto por Dilthey expressa crítica ao Estado como entidade absoluta, submetendo o indivíduo ao olhar genérico que o intimida diante de quem se apropria da voz, como representante do Estado de forma autocrática, do corpo coletivo. Bismark se posiciona como representação dos anseios do coletivo. Dilthey propõe pensamento contrário, onde o mundo social e histórico é espaço onde os seres devem atuar livremente e produzir suas expressões individuais que constituem aquilo que Dilthey denomina como objetivação humana (Dilthey, 2014). O indivíduo não é instrumento do Estado. O Estado é formado sim pelas ações individuais de cada um, onde as diferentes vivências devem ser valorizadas.
Para Dilthey é preciso adentrar no mundo dos sentidos produzido pelo indivíduo e sua relação com outros indivíduos e com as distintas manifestações de objetivação de vida. O indivíduo é o ponto de origem. Para tanto, não se pode abstrair o indivíduo de sua trama histórica, compreendendo-o em sua conexão original – no diálogo da sua interioridade com o mundo externo – que lhe dota da construção de sentido. A origem está na consciência do homem como produtor de sentido, através da sua atividade livre e criadora. A investigação sobre o mundo histórico-cultural deve considerar o conhecimento como função da vida psíquica humana que explica a produção de imagens presentes na criação artística – seguindo o percurso do indivíduo ao social, na singularidade de cada um de seus agentes.
A vida psíquica se articula como uma conexão de representações, valores e pulsões presentes na expressão da identidade singular do artista. Sua identidade dialoga com o sentimento vivencial de outros seres humanos e, apesar da singularidade de cada um no curso das especificidades de suas vidas, as imagens propiciadas pela arte trazem uma dimensão emotiva e valorativa integradora sobre a vivência individual e coletiva. Segundo Dilthey (2010:102):
“A compreensão mútua assegura-nos da comunhão que existe entre os indivíduos. Os indivíduos estão ligados uns aos outros por uma comunhão, na qual a coopertinência ou conexão, igualdade ou parentesco estão associados uns aos outros. Esta comunhão manifesta-se na compreensão da razão, na simpatia, na vida dos sentimentos, na vinculação recíproca à obrigação e ao direito que está acompanhada pela consciência do dever.”
Essa comunhão entre as unidades é o ponto de partida para toda relação entre o particular e o todo na consciência de si próprio, uno, se movendo para consciência da igualdade genérica, em sua diversidade, com os outros – na forma do meio social ou comunidade. Há uma ligação entre os seres de significados processados na vivência de cada um. Para tanto, cabe aos pesquisadores, segundo Dilthey (2010:111), “penetrarem e transporem-se para os objetos na visão do quanto eles incorporam a vivência humana do sujeito. As obras de arte são expressões destacadas do espírito humano na transposição para sua objetivação de vida.” Conforme apresentado anteriormente, “Erlebnis” surge como palavra-chave na obra de Dilthey que, em alemão, significa ocorrência, ventura, experiência e algo memorável que acontece com alguém. A composição da obra de arte é memorável no relato e vivência do próprio autor, conforme expresso por diversos compositores. Entende-se, nos trabalhos de Dilthey, “Erlebnis” como vivência singular do indivíduo, a imanência dele e o seu autoconhecimento sobre si mesmo em contato com o mundo, isso porque faz sentido para o sujeito. É construção própria e singular. A consciência da vivência como força ativa é “estar dentro” do próprio fenômeno manifesto pelo sujeito, onde temos consciência da conexão psíquica presente em suas atitudes e seus motivos. Aqui une-se conhecimento e ação. A arte é a manifestação desse dialogar com a vida dessa união onde a ação manifesta os seus vínculos históricos e espaciais. Para Dilthey (1945:249):
“o centro da nossa estrutura psíquica constitui-se em um conjunto de impulsos e sentimentos, e o jogo das impressões é elevado ao plano de atenção pela sua ação efetiva…assim se agitam as profundidades do nosso ser. A vida brota desse centro e essa conexão estrutural constitui a condição unitária da vida e do conhecimento.”
Para entender o homem, a psicologia precisa andar de mãos dadas com a história, dominando também a linguagem como manifestação humana que é. A linguagem é o instrumento para o sujeito se declarar ao mundo, expressar sua vivência e fazer história. A linguagem é relevante como instrumento de construção da história, pois se falo é porque existe a expectativa de entendimento do outro. Há uma base comum. Nessa conexão, provocada pela linguagem, é feito o julgamento de valores, fins e impactos mútuos, onde a memória social se alimenta das artes como representação da realidade. Cada indivíduo está no mundo, se dirige a ele e nele constrói sua história como parte da história coletiva.
A linguagem opera o milagre do verbo no imaginário que se faz carne nos atos e expressões do ser, na obra realizada, materializada. Ponte entre a ideia (mundo da subjetividade) e o objeto (mundo material). As Ciências do Espírito respondem ao interesse da comunicação, e não ao da previsão e controle. Para Figueiredo (2007:144), “quem fala em comunicação fala em emissores e receptores de mensagens, e estas – objetos de interpretação e compreensão – não têm qualquer existência independente do próprio processo de interação…o objeto das Ciências do Espírito remete, assim, necessariamente à subjetividade constitutiva da própria situação comunicativa.” A vivência manifesta precisa ser compreendida como elucidação da história e cultura individual em diálogo com o social. Se integra no entendimento do tempo e espaço históricos. É na conexão entre o ato individual e a sociedade que o agir humano adquire sentido. Para Ramos (2000:121), Dilthey entende que “a conexão com a vida nos é dada somente porque a vida é uma conexão estrutural, em ambiente no qual as vivências se comunicam entre si. Esta conexão é conseguida sob uma categoria abrangente, na qual é um modo de proposição diante de toda realidade afetiva, a saber, a relação do todo e das partes.” No meio dessa conexão estrutural estão pessoas se relacionando a partir de suas próprias vivências.
Dilthey destaca o efeito da comunicação humana através do processo que envolve o pensamento do emissor ao receptor. Tanto a fala quanto o ouvir não estão destituídos de sentido para ambos para que haja conexão entre eles. Ele não centra sua atenção ao processo de decodificação da linguagem. Já Schleiermacher, filosofo contemporâneo estudado por Dilthey, entende que o falante não se entende imediatamente, precisando ser decodificado. Para Dilthey, a linguagem tem o poder de configurar, instalar e criar realidades da forma consciente como emissor e receptor são capazes de elaborar, não de forma interpretativa, na visão do pesquisador, mas descritiva pela revelação existente em ambos. Isso é o que basta para ele. O artista, a partir de sua vivência, cria realidades com potencial de compartilhamento de vivências. Não existe evento em si mesmo apenas, mas sim construções narrativas onde a linguagem é a representação objetiva da vida diante daquilo que declara. E sendo a linguagem presente na vida coletiva, a dimensão intersubjetiva se faz presente como instrumento de construção de sentido individual ao individual, com reflexos no coletivo. Ou seja, de indivíduo para indivíduo e alcançando o coletivo na relação eu-tu.
Busca-se a compreensão de sentido das formas expressivas, ampliando a capacidade de comunicação humana e, acima de tudo, existencial entre os seres e de cada um consigo mesmo. Para Figueiredo (2018:54), ao analisar a obra de Dilthey, “não se trata de reviver diretamente a compreensão psíquica do outro, mas de interpretar suas intenções que fixam e objetivam como expressões de vida humana. Ou seja, trata-se de interpretar as mensagens do outro, mas mediatizadas pelo sistema simbólico, o que pode resultar na descoberta de significados até então inacessíveis ou até mesmo não estruturados pelo emissor.” Isso porque o receptor é agente ativo e consciente, capaz de elaborar sua construção diante de suas próprias vivências. A relação de vivências e significados, nas obras de arte, merecem ser entendidas na relação entre emissor (criador) e receptor (em contato com a obra).
A busca pela compreensão emerge do sentido existente no ato, baseado numa causalidade produtora das manifestações do ser a partir daquilo que declara. Segundo Figueiredo (2007:145):
“os fatos da história, seja a de um homem seja a de uma coletividade, tornam-se atos dotados de significado e, portanto, objetos de uma ciência compreensiva…nas Ciências do Espírito os objetos são os sentidos que os sujeitos atribuem ao mundo, as vivências que fazem do mundo e que expressam em seus atos comunicativos. Nos produtos formais ou informais desses atos, deve-se procurar o sistema de valores e significados que estruturam a experiência do sujeito.”
As formas de compreensão surgem da interação. O processo pelo qual conhecemos o interior é realizado na relação eu-outro. Para Dilthey (2000), a hermenêutica não é mais uma mera técnica interpretativa. A interpretação das obras não é uma profissão, muito menos um ato acadêmico ou intelectual. Trata-se de uma atitude que o ser humano deve ter diante da vida: compreender e, assim, compreender-se. A dinâmica da história acontece no processo de compreensão de si mesmo e do outro. Esse movimento inicialmente é individual e depois relacional de conexão de saberes. Para que aconteça a ação é necessário expressar-se e ter a capacidade de olhar para si mesmo na construção de suas ações interpretativas de si e do mundo.
Na visão de Dilthey (1956:31), “o que se pode considerar como seguro na psicologia não chega, por si só, para uma explicação das manifestações mais profundas do espírito humano.” O entendimento sobre o ser humano demanda visão complementar entre as Ciências do Espírito. Na psicologia, o olhar para o papel da arte na autoconsciência do sujeito não pode estar desatrelado do seu tempo histórico e linguagem. Dilthey eleva a consciência histórica, centrada na narrativa do sujeito, a suas últimas consequências, onde nada se separa da consciência sobre a vida. Dilthey (1956) estabelece crítica e ponto de corte entre o que denomina como psicologia analítica frente à psicologia descritiva. Ao se compreender diante do seu tempo, entre o que entende de si em contato com o mundo exterior, ele se constitui a hermenêutica de si mesmo. Compreensão lastreada pela consciência de si no tempo e espaço. Psicologia e história aparecem, portanto, com uma relação de complementaridade na linguagem utilizada pelo sujeito.
Na compreensão de Dilthey (1983), cabe ao pesquisador identificar, em primeiro lugar, a partir do próprio pesquisado e sua descrição de si, a experiência interior do indivíduo (“Erlebnis”). Esse conjunto psíquico é estruturado para o sujeito em si. Isso o permite ter visão do seu papel no mundo. Diferente do pensamento de Schleiermacher, contemporâneo e autor estudado por Dilthey, que defende a psicologia analítica, onde o pesquisador entende melhor o pesquisado do que ele mesmo. Dilthey questiona a condição do pesquisador alcançar o “Erlebnis” do outro (ou ser mais consciente do que ele), se o próprio se manifesta sobre sua vida e sentido que dá a ela. Na sua obra “Introdução as ciências do espírito”, Dilthey expõe que o homem não pode ser pensado no abstrato. Ele entende o homem no mundo como um ser vivente, com consciência de si, que se revela ao mundo, a partir da sua interioridade, lastreado pela sua vivência (“Erlebnis”) e capaz de querer, sentir e representar. Seu pensamento se opõe às leis deterministas sobre a vida psíquica, chamando atenção para a singularidade e pluralidade dos indivíduos com produções muito próprias.
Para compreensão da arte na vivência humana, a hermenêutica, no pensamento de Dilthey, surge com vitalidade na compreensão da produção humana e condição de conexão na relação eu-outro. Diante do foco de atenção aqui, a autobiografia do artista é “a forma mais elevada e mais instrutiva, na qual a compreensão da vida vem ao nosso encontro”, segundo Dilthey (2010:178), como matéria-prima para os pesquisadores ao estudarem o homem e sua criação\obra. A autobiografia é uma expressão de si mesmo. Nesse sentido, a manifestação diante da vida é um texto, onde cada interior constitui uma identidade, tanto para si mesmo como para procuração dos outros. Para Dilthey (2000) essa identidade, manifesta, por exemplo, em uma sinfonia, revela a identidade do autor. O pesquisador deve compreender aquilo que o autor lhe oferece de si através da obra.
O trabalho de apresentação histórica é realizado pela constituição reflexiva da vida. É uma autorreflexão expressa de maneira escrita sobre suas motivações artísticas, por exemplo, no transcurso vital de sua vivência. “A meditação de um homem sobre si mesmo permanece um alvo e uma base”, estabelecendo seu significado diante de si em diálogo com o mundo externo. Do ponto de vista hermenêutico, a palavra autobiográfica não é um mero veículo, meio pelo qual o sujeito se transporta ao outro. Ela é o próprio mundo, expressão de sua vivência que se torna transcendente porque alcança também o outro. Ao investigar “quem fala?” a pergunta busca conhecer o outro que, por sua vez, se revela e, ao mesmo tempo, oferece conhecimento sobre quem pergunta. No caso da música, quem ouve faz contato com a expressão da vivência que se deu no interior do compositor, mesmo sem a consciência dos motivos que o levaram a compor determinada obra. Quem ouve, despertado pela sua própria singularidade, se expressa diante daquilo que o contato com a ação do outro provoca. E o faz na história, cultura e sociedade de sua época. Sua manifestação é construtora da história. Para Dilthey (2010:179):
“O mesmo homem que busca conexão na história de sua vida, concretiza em tudo aquilo que sentiu como valor de sua vida, como finalidade dessa vida, em tudo aquilo que esboçou como plano de vida, que considerou, olhando para trás, como seu desenvolvimento, e, olhando para frente, como a configuração de sua vida e de seu bem supremo – em tudo isso, ele já estabelece uma conexão própria à sua vida sob diversos pontos de vista, uma conexão que será agora expressa. Ele destaca e acentua em lembrança os momentos de sua vida que experimentou como significativo e deixa outros mergulharem em esquecimentos…Desse modo, as tarefas mais imediatas para a apreensão e a apresentação das conexões históricas já são aqui parcialmente resolvidas pela própria vida.”
O indivíduo já prepara, dentro daquilo que faz sentido para si, seleção daquilo que é digno de apresentação, da narrativa e da sua atenção. Entre esses elos, entre um relato e outro, vê-se uma conexão que expressa a forma como a vida individual entende a conexão entre eles. Segundo Dilthey (2010:179), “a autobiografia é apenas a autorreflexão do homem sobre o seu transcurso vital de vida, uma autorreflexão expressa de maneira escrita.” Ela se encontra, por exemplo, nas cartas de Mozart ao descrever, durante as viagens com o seu pai Leopold, aquilo que mais lhe chama atenção (Mozart, 2017). Sua sensibilidade interna, diante do mundo externo, é descrita e por ele selecionada naquilo que escolhe narrar para sua mãe. Após tocar em Versaille e andar pelas ruas de Paris, Mozart descreve, aos sete anos de idade, a distância entre esses dois mundos. Em carta curta, onde poderia relatar uma série de fatos e acontecimentos no Palácio, ele escolhe mostrar a insensibilidade de Versaille com a pobreza dominante nas ruas de Paris – “Versaille não conhece Paris” (Mozart, 2017). É o mesmo sujeito que, anos mais tarde, escreverá que sente mais proximidade com os pobres do que os ricos (Mozart, 2017). Sua opção de vida, ao se insubordinar ao poder paterno e do Arcebismo de Salzburg, buscando autonomia e livre expressão musical, o faz transitar mais pelas ruas do que nos palácios. Suas óperas, entre elas aquelas que mostram servos que se impõem aos seus senhores, como As Bodas de Fígaro, dificilmente teriam sido compostas se Mozart aceitasse a função, como mestre de música, na corte em Salzburg, conforme posição exercida pelo seu pai Leopold. Sua construção e revelação de si, ao longo da vida, dizem muito sobre sua obra. Sobre Mozart, Dilthey (2018:13) escreve ao abordar “As bodas de Fígaro”:
“Agora se entende como Mozart conseguiu representar a vida de seu tempo: porque seu instinto genial o permitiu selecionar seus materiais, explorar com profundidade extrema a consciência, a suprema displicência cortesã de onde não se conhece a moral, a dificuldade de viver, nem as dificuldades do trabalho, de onde somente almejam os agrados da leve emoção que pretendem ser representados.”
Dilthey (2010:181) entende o olhar do indivíduo como revelador daquilo que mais chama sua atenção, seus valores:
“a vida aparece sob o ponto de vista do valor como uma profusão infinita de valores existenciais positivos e negativos. Ela é um caos de harmonias e dissonâncias…somente a categoria do significado supera a mera justaposição, a mera subordinação entre as partes da vida. E como a história é a lembrança e como a categoria do significado pertence a essa lembrança, é justamente essa categoria mais própria ao pensamento histórico.”
A experiência cotidiana se expressa na ação. É preciso olhar a vida em perspectiva e os elos entre os relatos, selecionados pelo indivíduo, pois somente ele, através de suas ações, torna possível a visão histórica. Somente esses relatos, em perspectiva, tornam possíveis o significado entre o que passou e o presente, se entregando, como pesquisador, a existência alheia e as conexões que o pesquisado elaborou para si como sentido e consciência de si.
Qual o papel então, na consideração sobre o transcurso da vida, deve ter o pesquisador na conexão por meio da qual reúne-se as partes singulares em um todo capaz de alcançar a compreensão da existência? Dilthey (2010:180) responde que “às categorias gerais do pensamento acrescentaram-se na compreensão da vida às categorias de valor, da finalidade e do significado.” É isso o que dá consistência à obra, transitando por ela como valor para o indivíduo, entrando em contato com a ordem interna e significado que promove nos sentimentos de outros. Isso porque, conforme define Dilthey (2010:87):
“Apenas na experiência interior, em fatos de consciência, encontrei âncora firme para o meu pensamento, e confio que meu leitor será convencido pela minha prova disso. Toda ciência é experiencial, mas toda a experiência deve ser relacionada e derivar sua validade das condições e contexto da consciência em que ela surge, ou seja, a totalidade da nossa natureza.”
É necessário que a singularidade seja compreendida a partir de dentro do indivíduo. E isso significa sua consciência e ação. Só a partir daí é possível interpretar, no nível da consciência histórica, as várias expressões da realidade humana de todos os tempos como uma experiência coletiva vivida como resultante da vivência (“Erlebnis”) individual de cada um e capaz de conectá-los ao outro e a coletividade. São essas vivências relacionadas que expressam a multiplicidade de objetivações de vida capazes de se conectarem. A compreensão do mundo histórico passado-presente é a compreensão dessas vivências, afinal as objetivações são processos de produção da vida do uno para o todo. O que é possível encontrar como objetivação no passado, conforme o exemplo de Mozart na busca pela sua autonomia e liberdade de expressão criativa, é compreensível verificar, em contextos distintos de intensidade e consequências, na singularidade da vivência da nossa própria vida.
A história, assim como a arte, não é separada da vida, sendo este um dos principais pontos do pensamento de Dilthey. Toda manifestação artística é perfeitamente historicizada e lastreada no tempo. No entanto, afeta vivências além do seu próprio contexto histórico. Ela não se limita (ou se isola) a um determinado tempo. O problema aqui é saber como elevar ao universal aquilo que é singular. A Ciência do Espírito, como define Dilthey, concebe o objeto – obra de arte, por exemplo – como dialogando com a experiência interior em cada tempo que se tem contato com ela, a partir do indivíduo. Ela emerge – é criada – de uma vivência singular, histórica e cultural. No entanto, transcende o tempo pelas várias vivências singulares de diversos indivíduos quando diante de um determinado objeto ou obra de arte. Aquilo que significa para um necessariamente não afetará o outro, mas haverá um significado em cada um para que a vivência se estabeleça no sentido construído. Isso porque a arte busca expressar o que é a vida, emerge dela, e se torna viva no significado que cada indivíduo, no seu tempo e espaço, é capaz de construir. Esta é, segundo Dilthey (2010:209), “a visão que torna possível sentir as semelhanças, o retorno das diferenças e aquilo que a arte representativa oferece.”
A obra de arte é oportunidade de compreensão do humano no encontro do eu, singularidade do artista, em contato com a expressão da vida humana presente em cada um de nós. Segundo Dilthey (2010: 65):
“toda manifestação da vida possui um significado no processo de criação, na medida em que, enquanto um sinal, expressa algo, e, enquanto expressão, aponta para algo que pertence à vida. A própria vida não significa outra coisa. Toda relação com uma obra musical pode e deve ser interpretada, tanto para quem cria, executa ou ouve.”
Um dos problemas centrais do conhecimento histórico consiste na relação entre dois polos de uma mesma origem humana: o indivíduo e as comunidades, o coletivo supra-individual no sistema onde o indivíduo se insere na conexão com outros. Cada indivíduo tem, ao mesmo tempo, uma parte fechada em si mesmo e quase incomunicável, de difícil penetração, e outra constituída por elementos comuns e expressos na linguagem, nos costumes e nos signos que tornam possível a convivência em sociedade. O coletivo, por sua vez, não é patrimônio de indivíduo algum, mas, ao mesmo tempo, é produzido por indivíduos e só existem por eles. Conforme apontado, Dilthey (2010) assinala a importância da individualidade como objeto de pesquisa sem perder de vista o que isso representa no entendimento sobre a coletividade, na visão do todo.
A arte é, portanto, uma das mais poderosas formas de amálgama entre o indivíduo e a coletividade, cooperando para uma visão do mundo histórico em cada pessoa, cada sociedade e, na produção artística, um mundo a ser revelado que vai além do tempo e espaço histórico de cada um. Uma obra artística do século XVIII tem seu lastro em questões históricas e culturais muito pontuais. No entanto, transcende o tempo e o espaço naquilo que revela sobre o humano no compositor e no ouvinte. Ambos são dinâmicos em suas pulsões humanas de revelação de si, do outro e daquilo que se torna valor humano. Dilthey (2010:212) destaca que há:
“ligação suprassensível no tempo, do finito temporal ao infinito, que é passível de ser expresso onde a série de sons expressa sentimentos…tomemos na cantata de Bach o diálogo da alma trêmula com o Salvador. Os sons que passam inquietos, velozes, em intervalos fortes, designam um tipo psíquico; os sons profundos, quietos, que se acham próximos uns dos outros segundo a pluralidade em uma série lenta, ligam outro tipo de esquemas sonoros. Ninguém pode duvidar que isso tem um significado.”
Esse significado é dado por quem o produz. Mas não apenas isso, significados são dados por quem ouve. E significado é construído a partir das vivências (“Erlebnis”) de cada um. Vivência e compreensão formam os dois lados do processo lógico. Dois lados que se interpenetram e revelam o ser. O ser, sujeito de sua própria história e construtor histórico-cultural, não apenas do seu tempo, como também daquilo que sua produção interliga na relação passado-presente na visão histórica mais ampla. Tudo está entrelaçado no próprio mundo sensorial como produto da história, segundo Dilthey (2010). Temos a todo instante algo sendo produzido ou já presente à nossa volta que veio a ser historicamente e chegou até nós. Aquilo que o espírito transpõe de dentro para fora torna-se, amanhã, história. A história não se separa da vida. A compreensão já constitui o elo de ligação, mesmo diante de todas as diferenças entre um tempo\espaço distintos. Uma unidade revela para si o seu conteúdo próprio e permite a todos os outros interpretá-lo. A compreensão, no entanto, é revelada através da ação. Nesse sentido, Dilthey (2010) assinala claramente o papel decisivo dos sentimentos para transformação das imagens artísticas. No entanto, não busca uma explicação causal sobre como os sentimentos ou a interioridade do artista entra nas imagens por ele criada, dando-lhes vida e expressando-se nelas. Sua vivência só é capturada pelo que é capaz de dizer sobre sua própria obra. Eis aqui um ponto que poderia limitar a amplitude de análise, na concepção de Dilthey, mas que possui a virtude de trazer com ênfase a consciência do sujeito, em suas obras e narrativas, e aquilo que é capaz de elaborar sobre sua própria vida.
A história das composições é possível como uma ciência histórica, propiciando a conexão das ações recíprocas entre os seres humanos. A compreensão de uma parte do transcurso histórico só alcança a sua realização por meio da ligação da parte com o todo e da visão panorâmica histórico-universal que permite a amplitude de compreensão nas partes nele presentes. A criação do eu revelado como oportunidade ao processo de entendimento do outro, com sua respectiva leitura acerca da sua própria existência. Dilthey (2010:143) analisa a poesia e o trabalho do poeta, e aqui aplica-se ao ato criativo da composição musical fazendo a transposição de um para o outro:
“Olho para o mundo humano. Nele aparecem os compositores. O mundo humano é o seu objeto propriamente dito. Nele realizam-se os acontecimentos que o compositor apresenta. Junto a ele despontam os traços, por meio dos quais os compositores emprestam significação ao acontecimento. Assim, acho que o grande enigma dos compositores, que coloca uma realidade acima da vida, que nos abala a própria vida, ampliando e elevando a nossa alma, só pode ser resolvido se as ligações desse mundo humano e de suas propriedades fundamentais com a composição forem esclarecidas. É só assim que pode surgir uma teoria que transforma a história da composição em uma ciência histórica. Isso se torna ainda mais relevante na medida em que a vida é a conexão das ações recíprocas entre as pessoas sob as condições do mundo exterior, ações apreendidas a partir da interdependência dessa conexão em relação aos tempos e espaços distintos entre eles.”
Dilthey (1956) postula que a apreensão da singularidade do objeto de estudo do pesquisador se dá por meio da simpatia – “sentir com e junto”. Ou seja, a efetividade do cientista, presente nas Ciências do Espírito, seria mobilizada como meio de transpor para a vida psíquica do pesquisado – colocar-se no lugar do outro para tentar reexperimentar os sentimentos e as intenções de um autor quando da criação da sua obra, a partir das fontes que dispõe para tal. Há, em Dilthey, uma íntima relação entre indivíduo e cultura (“o eu no tu”). Toda manifestação singular da vida – que é cultural – se volta para os indivíduos – em sua interioridade – onde cada palavra, cada frase, cada gesto, cada composição, cada obra de arte e cada fato histórico são objetos de investigação em potencial. A compreensão da vida é uma unidade maior e dinâmica, formada pelas unidades singulares constituídas pelos indivíduos em seus relatos. É esse elo entre as pessoas – e o sentido que oferecem – que permite o entendimento histórico. Somente as Ciências do Espírito, em suas diferenças de objeto e metodológicas em relação às Ciências da Natureza, permitem a compreensão mais ampla do humano. As Ciências do Espírito partem de realidade em realidade, de sentido em sentido, de indivíduo para indivíduo, formando o todo coletivo pelo rastro que as vivências individuais deixam. Para Dilthey (2010:78), “só o mundo histórico pode ser internamente revivido pela memória porque é o homem que faz a história, ao passo que não foi o homem que fez a natureza.” Só compreendendo a experiência singular vivida pelo pesquisado, o pesquisador pode compreender as condições histórico-culturais-sociais que lastreiam a produção da forma como aconteceu.
A obra artística é penetrada e transposta pela vivência humana. Nasce do indivíduo, se transmuta para o coletivo, na conexão entre as partes onde a arte é amálgama de desiguais, pois cada ser tem sua própria vivência. Isso porque a condição de possibilidade dos objetos está inscrita em nós, e não nos próprios objetos. A teoria de Dilthey se baseia na verdade do sujeito e não nas propriedades do objeto. É a atividade criativa do sujeito perante o objeto a ser conhecido que dá sentido ao processo de construção do conhecimento.
O sujeito é o fundamento. Sua criação opera passagem de indivíduo para sujeito da sua própria existência, protagonista de si e oferta ao outro, que dele se apropria na individualidade de cada um. É no indivíduo, agora sujeito de si, consciente de suas vivências, que se dá o processo de construção do conhecimento. É nele que reside a missão de escolher, decidir, sistematizar, reformar, validar e, acima de tudo, criar crenças, valores e modos de ação expressas naquilo que denominamos arte. E arte é compartilhada. Revelação do ser. A arte é intuitiva, brota de uma dimensão interna, mundo nuclear, impossível de ser alcançado em sua plenitude, mas que, através daquilo que cada ser descreve pode ser tocada. Nela reside um indivíduo, potencializado pela consciência de si na construção de sentido em suas ações e, em interação com o outro, estimula sua reflexão sobre si mesmo. É nessa dinâmica que reside o trabalho investigativo do encontro do eu que, revelado, abre possibilidades de encontro com o outro, capaz de transformar ambos. Mesmo separados por séculos e em espaços sociais distintos, o ouvinte alimenta a memória do artista que gerou a obra, fazendo-a transcendente ao tempo histórico do compositor.
Para Dilthey (2010:119) a vida histórica cria, sendo ativa na construção de bens e valores a partir da singularidade de cada agente criativo como resultado de sua vivência. Afinal, “há uma referência da vida que está em conexão com a essência do homem que une os indivíduos uns aos outros. Um cerne que não podemos captar psicologicamente, mas que se manifesta em cada um desses sistemas de relação entre os homens.” A transcendência presente no artista tem, segundo Dilthey (2003), lastro com a realidade por ele percebida e, acima de tudo, vivida e que se torna potente pela imaginação que vai além do real. A estrutura do indivíduo que cria e produz arte tem uma força motriz atuante e poderosa, que se comunica a todos os construtos compostos do mundo espiritual, de nexo histórico e integradora como instrumento de potencialização reflexiva do ser.
A construção artística é fruto da sensação, da percepção sobre o mundo em que vive e sua pulsão por meio do qual atua no mundo e dialoga com ele. É uma estrutura, segundo Dilthey (2010:29), “muito dinâmica que regula e governa sua vida de forma muito sútil, em sua sensibilidade e subjetividade, mas tremendamente energética.” Esta estrutura é o núcleo de sua individualidade, universo muito próprio, atuando sobre as representações do real que é capaz de criar imagens e representações, potencializada pelo seu imaginário, seus sentimentos provocados pela vivência e capacidade interpretativa.
O compositor vive a mesma vida que os outros seres humanos, compartilhando o mundo de evidências, nas suas composições, que puderam fazer surgir sua criação (Dilthey, 2010). A mesma vida não significa a mesma vivência e olhar do ouvinte, assim como as ações que derivam da experiência vivida. Há uma singularidade evidente, como também um mundo onde se faz presente suas experiências humanas que o liga ao mundo coletivo, em especial pelo contato com a obra presente imersa na vida sócio-cultural. Todo o material construído na criação artística procede da vivência humana, sofre uma transformação pela estética da linguagem escolhida e essa transformação ganha maior amplitude no processo de interação ou provocação instalada no outro, com sua dinâmica singular que reinterpreta a obra a partir da vivência que vai além do autor. Isso ajuda a entender o valor universal da relação de efeito da arte na capacidade de leitura humana sobre si, o outro e a natureza que o envolve.
A concepção artística surge naturalmente na vida do artista pela linguagem que domina na constituição da sua técnica e espírito, mas isso é só a origem, o ponto de partida, pois a obra se expande no outro e vai bem mais além. E o outro pode ser estimulado, pela educação, para encontrar na obra de arte caminhos para sua compreensão da vida. Dilthey (2008:54) defende que:
“o valor vital da obra de arte e como isso é necessidade de expressão e compreensão humana. Não é apenas uma necessidade básica do artista, como também uma necessidade de sentir que tem o outro. É uma relação que nasce da subjetividade do poeta, sua vida interior em diálogo com o mundo exterior onde a vivência e construção de valor social são sustentadas pela arte.”
Diante dos pontos abordados, cabe chamar atenção para o conceito da vivência como central no pensamento de Dilthey para entendermos a gênese da obra artística. Revelar a vivência é missão do pesquisador em contato com a obra. Nesse sentido, para Dilthey (2008:102) o artista:
“vive na riqueza das experiências do mundo humano, tal como o encontro consigo mesmo e como percebe isso fora de si. Não produz para construir generalizações. O olho do poeta descansa reflexivamente e na quietude do seu espírito na busca por interpretar-se. São para eles significantes o ânimo do seu espírito como fundamento vital de toda criação.”
Ao compor, o artista não é indiferente em relação ao viver. Tem, antes, uma relação intensa, viva e nela deposita sua potência criativa. Nela ele coloca sua vida interior em diálogo com o exterior como elementos dinâmicos de uma realidade que ele vivencia e traduz em música. Chopin, por exemplo, declarava sua dificuldade em verbalizar determinados sentimentos. O piano era sua maneira de expressar o que sentia. A vida era vivida na linguagem que lhe permitia expressar a dinâmica do seu ser (Wierzinksy, 1976). E o que Chopin buscou comunicar através da sua música e do piano? O que sua obra revela sobre si? Há aqui um campo de pesquisa que precisa ser explorado como revelação do ser. Ele escreve e declara que usa a linguagem musical para expressar aquilo que sua linguagem verbal não consegue expor como gostaria. Isso é um fato baseado na declaração consciente de que a música é por ele utilizada para se expressar. Como Mozart escreveu em uma de suas cartas: “Nada acontece do nada”, assim Chopin declara que sua música tem origem na necessidade de expressão daquilo que sente, reforçando que é a única linguagem que encontra para dar voz à sua vivência. Ao analisar a música sacra alemã, nas obras de Bach e Mozart, Dilthey (2018:28) entende que “o trato com Deus pode converter-se em uma conversação da alma consigo mesma…o sentimento de sua vida interior que passa a ser um fenômeno visível e audível.” Os movimentos de reforma protestante, segundo Dilthey, estimularam a palavra e a interioridade, diante da crítica ao visual representado pelas imagens. Isso deu a música a função de fazer visível a vivência espiritual através das notas. As obras musicais tornaram sonoros aquilo que era visual na liturgia e experiência cotidiana, onde a força inventiva do gênio musical não trabalha no vazio. A música é a expressão do estado da alma alimentada pela vivência do emissor e do receptor.
Dilthey (2010) reconhece a música como promotora de um estado de ânimo que constrói sentido para entender a vivência. A sonoridade da pulsão interna como linguagem e a música como ritmo de vida interna que se expandem no diálogo com o mundo exterior. Através da arte, o sujeito não declara algo apenas para si. Há um valor social presente naquilo que realiza, de dentro para fora. A música não é uma entidade externa. Ela reside, mesmo no ouvinte, dentro de si na sua construção idiomática ao ser fruto da escolha de quem ouve. Seu sentido só se manifesta a partir de uma escolha própria como objeto daquilo que internaliza. Não se trata aqui da música como um vestido que cobre o corpo, e sim como sua pele natural. Tornar pele é dar sentido, existência para o que uma determinada música significa na vida de quem a cria e a ouve. A atuação no objeto (como resultado de sua escolha) produz uma vinculação íntima de algo interior que se expressa no exterior. Ambos constituem uma unidade de vivência singular construída pelo próprio sujeito em si e para o outro, pois não se pode desconsiderar que há um destino além do universo de quem compõe. O artista tem uma dinâmica própria e o papel da sua obra é provocar. E provocar quem tiver a sensibilidade de ser provocado. Provocação que tem duas origens – dentro e fora do sujeito. Nasce dentro, do interior, do íntimo e da sua própria busca de si diante do espaço que busca construir no mundo. Assim também vivo, no meio externo, elementos que o estimulam a partir daquilo que outras vivências, expressas no meio social, produzem em seu interior.
Em resumo, Dilthey destaca três elementos na conexão entre: a) a singularidade do artista, diante da sua própria vivência; b) a arte e sua produção artística, obra que emana da vivência do próprio autor; c) a singularidade do receptor, em contato com a vivência do outro. Tal relação é objeto das Ciência do Espírito, campo do saber revelador da vida humana, que busca uma explicação coerente para a arte individual ancorada na psicologia e história, descrita como uma articulação entre o uno individual do artista, a cultura e a história presentes na sua vivência lastreados no tempo e espaço da sua existência. Trata-se de estudo psicológico e histórico do desenvolvimento da individualidade em contato com o outro e a sociedade, no qual essa individualidade dialoga com a imagem do mundo, tratando simbolicamente da realidade onde a arte transmite objetivos e intenções presentes no autor. Autor-arte-receptor devem ser investigadas nas seguintes perspectivas:
- O sentimento expresso pela vivência como revelador de imagens constitutivas da vida. Isso se manifesta na criação artística como estímulo ao processo reflexivo e de construção do conhecimento, a partir da sua ação. A autobiografia do artista revela suas motivações no processo de criação, a partir de sua vivência;
- As representações artísticas se diferenciam na forma, mas se revelam em métodos descritivos do particular ao geral. Do individual ao coletivo. Discerne uma realidade individual e, ao mesmo tempo, reveladora de imagens coletivas que dão vida ao sentimento particular de outros. A vivência do artista não se limita a si próprio. Há expansão pelo diálogo com o mundo externo e, em especial, na vivência do outro – a compreensão do encontro do eu no tu;
- Há uma explicação causal interna na criação que deve ser investigada. A vivência é a matéria-prima da arte, onde os sentimentos intervêm na relação da interioridade do artista em diálogo com o mundo exterior, permitindo pistas na constituição da vida humana, na sua expressão como fonte de conhecimento social e consciência da vivência como fator de estruturação psíquica.
O pensamento de Dilthey nos estimula a pensar que o mundo natural é estranho e opaco para o pensamento sem o filtro da vivência refletida pelo sujeito que o produz. O caminho de acesso à natureza, seja ela pessoal (interna) ou na ambiência (externa), é pobre sem o instrumento da arte como estímulo ao processo de reflexão e prazer que propicia. Levamos aos outros nossas inquietações em que a sociedade é o nosso mundo. Palco das nossas buscas. Inquietações que produzem criações artísticas e que, ao mesmo tempo, nos fazem buscar por elas. O eu e o outro se encontram. A arte é um jogo de interações, talvez a mais potente socialmente, onde cada sujeito tem a capacidade de viver em comum com outros, sem abrir mão da sua individualidade na consciência construída de si. O indivíduo deve ser, segundo Dilthey (2010:87):
“a referência em torno da qual se organiza a investigação do mundo humano. O indivíduo vive, pensa e cria sempre em uma esfera de comunidade…vivemos uma atmosfera que nos rodeia. Estamos imersos nela. Nos encontramos em um mundo histórico e compreendido no diálogo de nossa intimidade com o mundo externo, onde há significados e sentidos para serem compreendidos, ao falarmos sobre nós mesmos, sobre os outros e a vida social que nos é tão cara como forma de existência.”
A arte pode ser um poderoso instrumento de compreensão da vida. Na obra de arte está encarnada uma interpretação do humano. É expressão do diálogo do íntimo com o mundo externo. Com construções de vivências próprias, podemos aprender a ver através dos olhos de um pintor. Diante da singularidade de nossas vivências, podemos aprender a ouvir através da composição do músico. Podemos aprender a ler através do texto do escritor. Shakespeare nos ajuda a entender o que acontece no teatro do mundo, quando buscamos entender nossa interpretação diária. Fernando Pessoa o que ocorre na profundidade escrita na alma humana, dentro daquilo que lemos no interior de nós mesmos. Debussy naquilo que a natureza oferece aos nossos ouvidos, diante da melodia que conseguimos constituir nos sons que ecoam em nós a partir de nossa própria vivência. Tudo isso demanda interpretação. Exercício de vida. Onde o outro pode revelar muito daquilo que buscamos entender em nossa própria singularidade.
Notas
¹ Spaethling, Robert (org). “Mozart’s Letters, Mozart’s Life”. Faber and Faber: London. Pg. 398. 2000.
² Swafford (2017) na biografia que escreveu sobre Beethoven apresenta que, quando chegou em Viena, Beethoven tinha consciência que sua habilidade mais fraca era o contraponto, ou seja, a técnica de costurar melodias. Os compositores, à época, passavam por exaustivos exercícios de domínio da construção harmônica, buscando a tessitura daquilo que é distinto. Se Mozart foi o seu mestre inicial na arte da improvisação, Haydn teve o seu papel na técnica do contraponto em Beethoven.
³ Mozart afirma, em carta ao pai datada de 07/2/1778, que não abre mão da composição frente ao instrumento. A essência está na composição, onde o instrumento orbita em torno daquilo que é o núcleo da composição musical.
Sobre o autor:
Carlos Netto, 52 anos, doutor em Psicologia Social pela USP e Pós-doutorando em Comunicação Social pela USP. Professor convidado da FIA e do Uol EdTech. Criador e dirigente da Inspirartes Produções Culturais Ltda. Diretor do Banco do Brasil por 8 anos, tendo administrado áreas de Gestão de Pessoas, Varejo e Estratégia. Autor do livro “A Arte Nos Sonha”, que será publicado em março pela Editora Escuta.
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