Mainá Santana
A primeira memória que me vem à cabeça quando penso em textos sobre sexualidade tem a ver com revistas “femininas”, daquelas que a gente aprendia a ler na adolescência. Lembro-me de títulos tipo “Como enlouquecer um homem” ou “seja uma deusa na cama”. Na realidade, quando escrevi em um site de busca “como enlou”, para checar se não estou inventando memórias, o próprio site me sugeriu que eu completasse com “como enlouquecer seu chefe” e, em seguida, “como enlouquecer um homem de touro”. Por curiosidade, cliquei e tirei um print da minha tela, só para compartilhar com vocês.
Nessa minha pesquisa, me chamou a atenção o fato de que ainda estamos falando — rasamente — de como dar prazer ao outro. Tem algum tempo que venho me questionando se o outro (ou a outra, ou e outre) deveria ser realmente o sujeito da minha sexualidade. Será possível ter um corpo que vive uma sexualidade plena?
Que corpo é esse que se apresenta diante do espelho? Eu me olho no espelho por completo?
Primeiro. Entendo que sexualidade tem a ver com uma exploração do erótico, de si e do outro, não apenas durante o ato sexual. Li um milhão de vezes quanto a mulher “se prepara” para o sexo, quanto a fantasia envolve o seu imaginário, que o cuidado que o homem tem com a mulher pode entrar no campo do erótico feminino e deixá-la mais suscetível ao encontro com o parceiro. Tudo em função do que o outro me proporciona, nada em função do que eu desejo ou sinto. Quando procuro respostas via internet (ou seja, externamente), a grande maioria das falas me traz coisas do tipo “explore o seu corpo”, como as regrinhas aprendidas lá nos meus 15 anos lendo revista com as migas. Explorar como? Explorar o quê? Que corpo é esse que se apresenta diante do espelho? Eu me olho no espelho por completo? Ou tenho nojinho do que eu sou? Por quê? E então, questiono se os homens sempre são essas pessoas preparadas para o sexo, a qualquer hora, imbrocháveis, viris e insaciáveis como nas rodinhas de conversa as quais pude tangenciar. Nesse sentido, é de meu interesse perguntar junto aqui a quem me lê que raio é essa exploração do corpo, o que é essa compulsão por ser uma deusa do sexo e por ter o seu pênis sempre pronto. E, obviamente, eu parto do meu lugar de fala (mulher, negra, com ascendência indígena, hetero, magra e sem deficiência) para escrever este texto, mas penso que são colocações pertinentes para muitas pessoas, seja porque partilhamos algumas especificidades (tipo ser hetero, negro, mulher), seja porque nos relacionamos com o diverso.
Pois bem, talvez compreender uma sexualidade saudável passe primeiro pela compreensão de si mesma/o e depois com o outro nessa relação. Infelizmente, isso perpassa por construções sociais de qual corpo é o seu; tem sempre alguém dizendo o que você é (vide “tira a calça jeans, bota o fio dental, morena você é tão sensual”, entre outras narrativas erotizantes e objetificações diversas). Como perceber a si sem passar por esse lugar colocado como “o seu”? Talvez uma ajuda seja perceber primeiro seus amortecimentos. Perceber quantas horas meu corpo fica sentado, de pernas cruzadas, ou quanto tempo fica enlatado na lotação, se vive cheio de dor. Tem ainda aqueles corpos que precisam se preocupar se não vão tomar 81 tiros, se vão sustentar ou se rebelar contra a fama do “grande dote” ou de sua “sensualidade natural”, desde antes da adolescência. Outros que enfrentam relações gordofóbicas, e por aí vai. Alguém me explica: como é possível ter uma sexualidade madura e minimamente plena quando você leva todos os estereótipos para a cama com a/ o parceira/o?
[Eu nunca tive problemas com isso]. Nunca teve ou nunca soube nomear seus desconfortos? Ouvimos falar sobre “tamanho não é documento” em qualquer revista feminina que discorra sobre onde a mulher sente prazer, mas dificilmente contam para a população que a vagina tem menos terminações nervosas que a vulva (imagine passar bebês por ali se assim não fosse?!). Até tratam do assunto clitóris (que não é só o chapeuzinho, homens heteros e bis), mas não nomeia muito a vulva (parte externa da vagina) como esse lugar maravilhoso e cheio de terminações nervosas, o dobro da glande peniana. O períneo e o ânus, então, são esquecidos por muitos casais, por conta de tabus. Lembro-me de ter ouvido que “mulher que dá o cu é puta”, “homem que dá o cu é viado”. Que coisa horrorosa! Só as putas e os viados têm direito ao próprio corpo? Você sabia que têm prostitutas e gays que também sofrem com esse tabu? Por que é que alguma parte de nós mesmos, de homens e mulheres, deveria ser intocável? Você, no seu quarto, no seu banheiro, no seu íntimo, não deve nada a ninguém e aí eu lhe digo: não gostar é diferente de não testar e fugir de conhecer.
Para além daquelas questões anatômicas (superimportante de olhar, tocar, sentir), entendo que tendemos a concentrar nossa energia e atenção sexual apenas nos órgãos reprodutores, como se o corpo não fosse recoberto por um órgão maravilhoso chamado pele. Como se o corpo pudesse nos proporcionar prazer apenas na genitália (temos pele em todos os lugares, gente). Como se não tivéssemos ouvido, boca e todos os sentidos que podem ser usufruídos em uma troca com o outro. Como se explorar a própria sexualidade não demandasse tempo, atenção, quebra de tabus.
Talvez, para tanto, fosse divertido propor uma troca de afetos consigo mesmo/a. Aparentemente uma bobagem, mas qual é a atenção que você dá ao seu corpo durante o banho? Quais os cheiros que você gosta ou não de usar? Não, não é só o perfume caro, isso não tem a ver com preço, nem — neste momento do texto — com o outro e com o que ele vai achar, mas com como você gosta da textura da sua pele, com conhecer os seus cheiros; os que a sua pele recebe e exala, sem julgamentos. Quanto você presta atenção no seu corpo, independente de? Como você transa (e o programa de texto me corrige para “relação amorosa”, porque não podemos nomear as coisas do corpo como elas são) consigo mesma/o, ao longo do seu dia, sem tocar na sua genitália? Perceber essas sutilezas transforma como você se vê e se relaciona com o mundo.
Afinal, o objetivo de estar ali é a penetração? Por que precisa ser um tabu falar sobre o caso? É tudo sobre o pênis? Todos nós aprendemos que é, sim, e que é desrespeitoso questionar essa suposta eficácia infalível do falo. E aí, quando ele supostamente falha, isso é motivo de vergonha e de questionamento da masculinidade de alguém. Homens, um informe: vocês podem gozar sem ereção e isso não é uma disfunção. Vocês podem gozar também sem ejacular. Você pode não querer gozar e nada disso te faz mais ou menos homem. Como é tóxico e entranhado em nossos corpos esse tal machismo. Mal sabemos nomeá-lo, mal sabemos notá-lo, e por mais atentas e atentos que estejamos, elogiamos o tamanho do pênis do nosso parceiro, ajudando a mantê-lo nesse lugar de dominância, dando a falsa ideia de que isso é importante. Sim, talvez no imaginário, mas e ali no físico? Talvez nós, mulheres, precisemos sempre recorrer ao imaginário para a nossa satisfação por não conhecermos nosso corpo de maneira a testar e indicar outros caminhos. Se somarmos uma coisa à outra, podemos brincar com tudo.
[Ah, mas e se o/a fulaninho/a me julgar, não me achar forte suficiente, magra/o suficiente, sexy suficiente, homem suficiente?] Talvez o fato de uma pessoa não achar você suficiente demonstre a falta de sentido em lançar-se com ela em algum envolvimento. Inclusive, isso pode não ser um fato, mas um lugar do seu próprio imaginário, por ter vivido situações semelhantes, pois o reforço de situações desconfortáveis nos convida a vestir uma armadura perante o outro. Não acho que haja alguém neste planeta que seja insuficiente. Temos tudo de que precisamos dentro de nós mesmos; a insuficiência me parece uma narrativa que inventamos para criar critérios de superioridade e inferioridade. E se inventamos, podemos muito bem desinventar. Aí cabe a você escolher um/a parceiro/a que ou esteja nesse pé, ou que tope conversar sobre sexualidade com você, apesar das dificuldades e dos pudores (busquem se lembrar de ser generosas/os, a sociedade está falando também a essa pessoa como ela deve ser).
[Realmente, eu sou muito maravilhoso/a, um primor da natureza humana, já saquei as coisas, olha só esse isso tudo, uau, sou um deus.] Não é bem disso que estou falando; usar o outro lado da moeda ainda é usar a mesma moeda e, fatalmente, você não vai querer pagar esse preço. Não há superpotência sem impotência — vale mais a pena pensar na potência, essa que todos nós temos para fazer qualquer coisa. [Ah, mas o boy brochou, não eu.] Novamente, essa só é uma situação difícil porque inventamos que é difícil. Ainda que não seja comparável, porque o silêncio feminino não necessariamente é uma opção consciente: mulheres, vocês também já estiveram sem lubrificação alguma vez na vida, possivelmente forçaram uma barra e possivelmente entenderam que aquilo não foi gostoso; então, em algum lugar, nós sabemos que não é sobre isso. Em oposição, podemos acreditar que o problema somos nós porque ele brochou, aceitando uma objetificação em relação ao outro, introduzida socialmente dia após dia em todos os nossos corpos, para que acreditemos que existe uma culpa e que ela é nossa.
Temos tudo de que precisamos dentro de nós mesmos; a insuficiência me parece uma narrativa que inventamos para criar critérios de superioridade e inferioridade.
Você pode marcar um encontro, transar e fim. Definitivamente não estou julgando, muitas mulheres lutaram para que isso pudesse acontecer para todas as pessoas sem que elas fossem chamadas, por exemplo, de vadias. E sabemos bem quanto isso ainda acontece. Minha sugestão é adicionarmos camadas a essa troca com o outro, entendendo que é uma troca, não um “venha a mim o vosso reino” ou uma servidão ao desejo alheio. Você também pode marcar um encontro, não gostar e ir embora. Ou gostar e ir embora. Você pode marcar um encontro, conversar, conhecer a pessoa, sentir seu cheiro em um abraço, não como um animal à caça — e isso eu julgo, sim, porque ninguém é objeto de ninguém —, mas pela experiência de encontrar com outro ser humano. Tem a possibilidade de jogar ou não jogar, de estar ali por inteiro, fragilidades, diversidades e virtudes, tudo junto, como qualquer outra pessoa.
Faça o que tiver vontade, mas saiba de seus desejos (e eles ainda assim vão te surpreender), sem ser egoísta a ponto de não perceber que a outra pessoa está ali. É sobre isso, não é? Estar com o outro, trocar? Deixar-se levar pelo prazer de uma troca sexual íntima é estar presente, conhecer-se e se propor a conhecer o outro/a, sem que um brilhe mais ou menos, independentemente de ser ou não uma noite só. E aí, se organizar direitinho, todo mundo fica feliz.