Por Anderson Borges Costa
Quero falar nesta edição de um romance bem famoso, O cortiço, de Aluísio Azevedo. São vários os personagens que desfilam no enredo, mas nenhum é tão complexo e dinâmico como o próprio conjunto habitacional que se oferece como título ao livro. As três casinhas que originam o cortiço são o pontapé inicial para uma obra literária cuja arquitetura é uma alegoria para os contrastes e as vertiginosas transformações desiguais que caracterizam tanto o Brasil no século XXI como o Rio de Janeiro no século XIX. Ou seja, desde que O cortiço foi escrito, o Brasil mudou muito, exatamente para continuar como sempre foi.
A Wikipédia define um cortiço como “a denominação dada, no Brasil e em Portugal, a uma casa cujos cômodos são alugados, servindo cada um deles como habitação para uma família. As instalações sanitárias são comuns. Geralmente ocupados por famílias de baixa renda, os cortiços são chamados tecnicamente de habitações coletivas precárias de aluguel”. É interessante observar que o termo “cortiço” possui a mesma carga semântica nos dois lados do Atlântico lusófono. E é justamente o que une e o que separa o Brasil de Portugal a linha narrativa que constrói arquitetonicamente o enredo de O cortiço.
Publicado logo após a abolição da escravidão no Brasil, o romance de Aluísio Azevedo retrata um Brasil branco que se amestiçava com a presença principalmente de europeus (latinos e morenos) e de negros (escravos). Todos habitando, convivendo e se digladiando nos cômodos alugados por João Romão aos brasileiros e portugueses (livres e escravos) que cimentavam os primeiros tijolos em um país, cuja trilha sonora era uma mistura de samba e fado.
Desfilam pelo cortiço, na Avenida São Romão, personagens com pouca força psicológica, mas que se fortalecem por marcar tipos alegóricos, transformando a avenida em que se transforma o cortiço em um sambódromo com blocos carnavalescos. Destaque para as alas da baiana Rita, do capoeirista Firmo, do português ambicioso e inescrupuloso João Romão, da melancólica portuguesa Piedade, do articulado trabalhador português Jerônimo, da ingênua e servidora escrava Bertoleza, do aburguesado português Miranda, da bela e pura Pombinha, da independente prostituta Léonie e do parasita Botelho. A bateria, o coração da escola, é exatamente o conjunto arquitetônico em cujos cômodos soa o ritmo intenso das transformações dos personagens, deixando as transformações históricas pincelarem apenas o pano de fundo da narrativa de Azevedo.
Se historicamente é possível perceber, nas entrelinhas do romance, um Brasil que começa a dar seus primeiros passos enquanto nação independente de Portugal, o parto que permite o nascimento do Brasil se mostra algo forçado, talvez uma cesariana, pois o país recém-nascido tem uma personalidade própria, mas definitivamente moldada com DNA português. E é exatamente esse movimento que faz com que O cortiço seja um romance de formação — não a formação de um personagem, mas a formação de um povo, de uma cultura, metaforizada em um conjunto arquitetônico que é construído e reconstruído, tornando-se, no final, a antítese do que fora no início. Por esse motivo, o livro possui um enredo ágil e veloz, que confere dinamismo à narrativa. Basta observar as inúmeras vezes em que o verbo “transformar-se” e o substantivo “transformação” aparecem nas paredes do cortiço, por meio dos personagens. Piedade de Jesus, esposa de Jerônimo, se transforma em alcoólatra depois de abandonada pelo marido. O português Jerônimo se transforma em brasileiro, pois, de pai de família exemplar (apolíneo), torna-se um verdadeiro malandro brasileiro (dionisíaco) ao se separar da mulher para ficar com Rita Baiana. A pura Pombinha, moça de família, se transforma em prostituta e mantém uma relação homoafetiva com Léonie. O próprio cortiço São Romão, no início uma habitação para pobres trabalhadores, se transforma em um conjunto cada vez mais rico, gentrificado, deixando o conceito de pobreza ser personificado pelo cortiço vizinho, o Cabeça de Gato.
O cortiço, portanto, desenvolve uma narrativa que engloba uma vivência coletiva do cortiço, propício à promiscuidade, característica do Naturalismo. Ironicamente, ao personificar o cortiço, Azevedo animaliza o ser humano, que é determinado pelo instinto e pelo desejo sexual.
O desfile de personagens naturalistas em O cortiço se movimenta no passo e no compasso musicais e lexicais que tornam curiosas, para o leitor do século XXI, palavras como “samba”, “forrobodó” e “pagode”, que, antes de se tornarem ritmos musicais, são utilizadas no livro como sinônimos de festa, bagunça e dança, sempre regadas a bebida alcoólica e carne. Jerônimo personifica com mais ênfase essa transformação, pois deixa de tocar o melancólico fado português (a trilha sonora de sua vida enquanto casado com Piedade, sempre com a triste saudade do distante país natal, Portugal) e passa a tocar o alegre ritmo carnavalesco após se juntar a Rita Baiana.
O cortiço é, portanto, um leve romance naturalista que deve ser lido como quem ouve, com poucos cliques, a progressão de faixas musicais que se transformam, no tempo e no espaço, conforme o momento em que são ouvidas: em um aparelho celular, em um iPod ou em um gramofone. Boas leituras!
Anderson Borges Costa
Formado e pós-graduado em Letras (Português/Inglês/Alemão) pela Universidade de São Paulo. Professor de Português e Literatura na Escola Internacional St. Nicholas e professor de Inglês no curso Cellep. Escritor, autor dos romances Rua Direita e Avenida Paulista, 22, do livro de contos O livro que não escrevi e de peças teatrais.